sem ilusões, sem desilusão: luto é verbo também (e principalmente!) em tempos de retrocessos
eu queria estar fazendo um post exaltando a Fernanda Torres e o cinema nacional, mas tô aqui, uma da manhã cometendo textão porque minha utopia sempre será maior que meu desalento!
O desafio da modernidade é viver sem ilusões, sem se tornar desiludido.
As notícias recentes sobre o recuo de políticas de diversidade por grandes empresas como McDonald's, Walmart e outras grandes, somadas ao anúncio bizarro do Markito à decisão da Meta de “flexibilizar” as políticas de fact checking, as regras para coibição discurso de ódio (que maliciosamente eles chamam de censura, o que renderia toda uma outra discussão), geraram um enorme alvoroço no universo de quem trabalha com diversidade, sustentabilidade e de pessoas de bom senso em geral (infelizmente não muitas).
Como de costume, o fatalismo e o sensacionalismo se unem para gerar pânico e paralização política1.
E minhas amigas, amigues e amigos: isso também é projeto!
Tragédia anunciada? Sim, com toda certeza!
Ainda assim, chocante? Muito!
Mais que anunciada, eu chamaria de prevista, por qualquer pessoa que estude seriamente o tema, cientista sociais visionários como Milton Santos2.
(sobre isso, sugiro muito a leitura deste post do Geopolítica Hoje e, para os mais animados, as fontes completas estão ao final!)
Pessoalmente há mais de dez anos (para muitos, mais ainda) a gente alerta, a gente implora quando precisa, apela, xinga também porque ninguém é de ferro, ri dos memes e da nossa própria desgraça, tem crise de ansiedade e insônia e lágrimas de nervoso, de raiva, de ódio e de incompreensão que “diversidade na liderança” não é slogan ou medida suficiente.
Então eu sei, de verdade eu sei (e o rivotril e a posição fetal em que eu estava no dia do anúncio podem confirmar!) o quanto é cansativo não poder sequer tomar um fôlego.
É tentador cair no desespero e no dedinho nervoso do compartilhamento das notícias mais óbvias, sensacionalistas e paniquentas!
Considero essa uma grande armadilha do nosso tempo e acredito, de verdade, que resistir à desesperança e permanecer conscientemente otimista é um ato político de resistência.
Em setembro de 2019, publiquei uma reflexão sobre ideologia em que abordei justamente o quanto a desinformação e as fake news foram um dos pilares da campanha de Jair Bolsonaro e de muitos parlamentares deste mesmo espectro político ultraconservador, no Brasil e no mundo.
De fato, desde 2014, presenciamos um aumento significativo e relevante do número de parlamentares considerados conservadores e com alguma pauta assumidamente religiosa em sua agenda política (#saudadesestadolaico).

O tema, portanto, passa longe de ser novidade, mas nem por isso perde sua importância, relevância e necessidade de esclarecimento constante.
Hoje, assim como então, proponho (mais uma vez!) uma reflexão sobre a importância de atentarmos à nossa argumentação para fins políticos.
Diante das notícias recentes sobre o recuo nas políticas de DEI e o (re)alinhamento de grandes corporações à agenda da extrema direita, é fundamental evitar o fatalismo. Para isso, precisamos distinguir o que foi uma estratégia vazia de negócio – uma simples cooptação das pautas dos movimentos civis e sociais por direitos humanos – do que representava (e ainda representa) uma construção genuína de posicionamento e visão de longo prazo em relação a temas de relevância social, legal, reputacional e, acima de tudo, humana.
Além disso, para não sucumbirmos à desilusão, é crucial aprofundar a compreensão das razões – e dos mecanismos – que levaram o tema a ganhar tanta visibilidade no pós-George Floyd. Em outras palavras, aqueles que se emocionaram acreditando que o mundo estava mudando porque empresas estavam se apropriando de nossas pautas ou porque celebridades postavam quadradinhos pretos em seus feeds para se autoproclamarem #antirracistas, são os mesmos que agora, diante das notícias de “abandono” da agenda, rapidamente cedem ao desânimo, à desmobilização e ao desamparo.
Disclaimer: longe de mim minimizar a gravidade dos posicionamentos ou a relevância do tema ser trabalhado no mundo corporativo (também!), mas insisto, há muitos anos (assim como gente muito mais gabaritada que eu há muito mais tempo!) que boa parte do que vinha sendo feito era espuma, e espuma continuaria sendo.
E não digo isso ingenuamente como quem acha que os efeitos de as redes se tornarem - ainda mais - uma selva de pedras não sejam gravíssimos, mas como quem acredita que, a verdade não dissimulada, a máscara cair e se estatelar no chão, é sempre melhor de ser combatida do que a diluição e esvaziamento de uma luta tão importante.
Além disso, o tamanho e o poder monstruoso de um inimigo declarado, torna o combate coletivo a única opção. Ou melhor, escancara o que sempre foi a única verdadeira opção.
Porque individualizar, colocar fadas sensatas em pedestais para serem ovacionadas sempre foi uma distração maliciosa do neoliberalismo.
Em 2019, em um dos pontos altos daquele ano em que nossos maiores pesadelos políticos estavam apenas começando em terra brasilis, tive a oportunidade de ouvir Angela Davis ao vivo no Brasil e escrevi algumas reflexões sobre os pontos que ela apresentou a respeito do tema diversidade e inclusão nas empresas.
Somos ótimos em celebrar o avanço individual sem levar em consideração que a diversidade por si só pode significar simplesmente que indivíduos anteriormente marginalizados foram recrutados para garantir uma operação mais eficiente de sistemas opressivos.
Pouco antes de ouvir Angela ao vivo (mas já tendo lido boa parte da obra dela), eu havia escrito um artigo no Linkedin intitulado: Por que deveríamos parar de dizer que "Diversidade e Inclusão dá lucro"! no qual, a partir do caso Tylenol, eu analisava e provocava a forma como as políticas de DEI vinham sendo implementadas e vendidas.
De lá para cá, não foram poucas as discussões que tive sobre este tema com diferentes públicos, chefes, pares, equipes e audiências. Ainda hoje, escuto e leio esse discurso em diversos lugares.
Minha provocação envelheceu tal qual vinho, e agora se torna uma profecia amarga de ser engolida:
Então, será mesmo que precisamos argumentar que diversidade e inclusão trazem lucro? Será que não podemos, ou devemos, reiterar a importância de se viverem efetivamente os valores da organização e que a igualdade de gênero, para citar apenas um pilar da diversidade, precisa ser perseguida porque ela é o caminho ético e a única forma de se alcançar justiça social com mulheres (e homens, mas esse é assunto para outro artigo)? Será que, realmente a linguagem do dinheiro e do lucro é a única que os executivos entendem e conhecem? Eu sempre tenho a impressão de que estamos subestimando e infantilizando demais este público ao assumir determinadas premissas.
Implementar programas de compliance ou de diversidade e inclusão envolve mudança de cultura e não apenas palavras escritas em um "papel" que aceita qualquer coisa. E mudança de cultura só vem quando mexemos em valores e motivadores intrínsecos. É por isso que nós, que nos propomos a trabalhar com o tema, precisamos urgentemente alinhar este discurso e parar de dizer que precisamos fazer algo porque dá lucro e passar a dizer que iremos fazê-lo pois o certo a ser feito.
Por fim, quero deixar uma provocação, para um outro momento, a respeito de incentivos e recompensas e o chamado efeito Folly A and B (3): será que não estamos incentivando uma coisa (diversidade e inclusão) e recompensando outra (lucro pelo lucro) ao usarmos esta linha argumentativa?
Em outro artigo, mais ou menos na mesma época3, também questionei:
Quando analisamos um discurso, mais do que olhar para o fato de “que alguém disse alguma coisa em um dado momento”, precisamos aprofundar nosso olhar para o que passa a acontecer “uma vez que essa coisa foi dita naquele momento”.
Não podemos deixar de lembrar também que o discurso, embora produza “efeitos de verdade”, está sempre permeado pelo poder e, será por sua vez, além de impactado por este, constitutivo do mesmo.
Meu ponto de fundo era e continua sendo: quando políticas de DEI não forem hype ou lucrativas, o que faremos com esse argumento?
Cada vez mais a guerra é discursiva, mas ela violenta e mata corpos e existências de carne, osso e sangue. Ela exclui literalmente (e literalmente é literalmente mesmo! #entendedoresentenderão)
É assim que o discurso opera: ao mesmo tempo em que ele se pauta na realidade, ele também constrói a mesma.
E tudo isso, seja o hype, seja agora o backlash, é sintoma de algo muito maior e mais perverso: um sistema que desumaniza para perpetuar sua própria lógica de exploração.
Sim, o capitalismo não é apenas uma máquina de moer corpos; ele é uma máquina de moer subjetividades, que transforma sonhos em mercadorias, lutas em slogans e vidas em números cada vez mais descartáveis.
Já refleti diversas vezes sobre como, em sua versão venom-turbo-power - também conhecida como neoliberalismo - até mesmo os nossos afetos e conexão humanas são cooptados. Laços sociais precisam ser estraçalhados e a solidariedade enfraquecida a ponto de nos convencer de que não precisamos uns dos outros e somos independentes. De que o sucesso é individual e de que o problema de Mateus é de quem o pariu.
O neoliberalismo nos aliena e nos paralisa e sequestra até mesmo nossas emoções.
Ele transforma a dor em combustível para produtividade, a solidão em uma condição normalizada e a esperança em uma mercadoria a ser vendida em doses calculadas. Nos isola e nos convence de que a solução para nossos problemas está em nós mesmos, no famoso discurso do EUpreendedorismo – uma narrativa que destrói qualquer chance de resistência coletiva.
A meritocracia é a mentira que inventaram para despolitizar a vida, colonizando o nosso senso de “eu” e nos afastando da responsabilidade coletiva.
No entanto, o que vemos agora é um reflexo mais profundo de como o capitalismo utiliza discursos de inclusão e diversidade como ferramentas temporárias, prontas para serem descartadas quando não mais servem aos lucros. Não é coincidência que, em tempos de retrocessos políticos, essas pautas sejam as primeiras a sofrer ataques.
Representatividade individual sem transformação estrutural é, muitas vezes, uma armadilha – o famoso discurso do “favela venceu” que celebra vitórias individuais enquanto ignora as desigualdades que permanecem.
A inclusão que não desafia estruturas de poder é apenas mais uma engrenagem no sistema. E que mais me inquieta é que essa lógica não apenas nos aprisiona, mas também nos treina a aceitar a prisão como natural e a tentação de apresentarmos respostas rápidas e sensacionalistas nos aliena ainda mais da complexidade das questões que enfrentamos.
Resistir é um exercício de reflexão contínua, de escuta ativa e de indignação persistente. Construir e reconstruir laços é doloroso, mas também absolutamente necessário. Principalmente porque o capitalismo trabalha incansavelmente para fragmentar esses laços, transformando até mesmo nossos afetos em bens de consumo.
Sinto muito galera, mas não há resolução fora do coletivo. Não há como frear a autodestruição de maneira individual. Estamos todos conectados, e o fortalecimento das coalizões e das negociações políticas nunca foi tão importante.
Sim, a gente precisa do amiguinho e da amiguinha pra sair da merda em que estamos afundando na velocidade dez do créu!
E sabem do que mais a gente precisa?
Do E S T A D O! (respira fundo liberal!)
A gente precisa de ESTRATÉGIA e TÁTICA POLÍTICAS!
A Raíssa (@salienciagroovosa) fez reflexões cirúrgicas sobre este ponto neste post aqui.
Politizar a vida e criar cidadãs e cidadãos críticos e conscientes, igualmente, dá trabalho e demanda esforço, compromisso e reflexão crítica. Não é simples mas é a única saída.
Às vezes diversidade faz sentido pro negócio, do ponto de vista financeiro, às vezes não. Muitas vezes ela é bastante incômoda para fins, por exemplo, de políticas demográficas e ônus previdenciário, para ficar em apenas um exemplo e, neste caso, discursos anteriormente usados para incluir, podem voltar repaginados como argumento para excluir.
Então, seja se estamos falando aqui de políticas de igualdade de gênero ou de D&I - em sua forma mais ampla - estamos produzindo discursos e precisamos então, dentre outras, nos perguntar (sob pena de contribuirmos, sem assim desejar, para mais desigualdades, menos eficiência e eficácia dessas mesmas práticas que estamos defendendo):
1. Que verdade este discurso está representando aqui?
2. Como o discurso é e está sendo construído? Quais evidências são usadas? O que foi deixado de fora?
3. Quais interesses estão sendo mobilizados e quais não?
E como eu tô o puro suco de nojo aqui me autocitando o tempo inteiro (credo!), aqui vai um outro artigo de LinkedIn que eu escrevi sobre a melhor série de todos os tempos (com muitos spoilers, então cuidado!):

Representatividade, diversidade e inclusão importam muito! São mais pessoas diferentes pensando em soluções para problemas complexos criados historicamente por um grupo homogêneo e suas práticas predatórias e excludentes, mas também porque na verdadeira diversidade, somos também agentes que transitam em mais de um grupo, ora privilegiada, ora oprimida.
Representatividade, diversidade e inclusão importam, mas não são suficientes!
Assim como muitas mulheres foram contra o voto feminino, tantas outras, mesmo feministas, eram contra o voto de pessoas negras e, ainda hoje, tem muita autoproclamada feminista transfóbica por aí.
O que vemos frequentemente (e recentemente temos tido uma chuva de exemplos disso) é gente que corre "reconhecer privilégio" e instrumentaliza uma causa, mas que no dia a dia pouco (ou nada) faz. Ou, ainda, que se esconde no fatídico lugar de fala para silenciar diante da injustiça.
Apenas ter mais mulheres "no topo" não é suficiente para uma sociedade mais justa: é necessário que se trabalhe consciência de gênero, raça e classe em quem irá liderar a mudança que desejamos ver no mundo.
É preciso olhar para feridas e corresponsabilidades.
E aí, tenho uma péssima notícia, antes de ir para a parte boa: não há solução simples para problemas complexos, tanto quanto não há resposta óbvia, senso comum e jargão de internet que nos salve deste imbroglio em 5 minutos de feed rolando com pessoas desalentadas e prontas para entregar os betes.
Também não há saída única, pois os problemas com que estamos lidando, por mais geopoliticamente e economicamente interligados que sejam, são múltiplos, complexos e cheios de nuances regionais, locais, de gênero, raça, classe que os fazem, ao mesmo tempo em que os podem resolver.
Agora então a “boa notícia” (não se animem muito que logo na sequencia vem trabalho pra fazer!)
Vejo este momento então, para além do desespero, como uma enorme oportunidade de reivindicarmos nossa força coletiva e exigir do Estado e das corporações (que sim, precisam cumprir leis e respeitar a soberania nacional!) o que se começou a discutir no início da globalização.
A Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social (Declaração EMN), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é de 1977.
Pois é, este é também um chamado a todos nós para fortalecer o multilateralismo, expurgando o que há de mais sórdido da politicagem destes órgãos.
E atenção: favor não confundir politicagem com o fazer político!
Não se faz democracia fora da política, então tenham muito cuidado também como isentões e isentonas que adoram demonizar e criminalizar a política, defenderem estado mínimo porque “o estado é ineficiente” e se colocarem como outsiders. Eles costumam usar jargões como “nem esquerda, nem direita”, “político é tudo vagabundo”, “é tudo farinha do mesmo saco”.
Não é fácil viver sem ilusões, mas também não podemos nos tornar desiludidos.
Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas a sobrevivência de pautas como diversidade ou inclusão. É a preservação de nossa própria humanidade e para tem antos grupos, recuar ou não lutar NUNCA FOI UMA OPÇÃO! Sobreviver é a única estratégia possível quando a sua vida está sempre risco e você é alvo.
Isso significa que, se você não é um alvo direto, mas defende estes temas, esta é a sua hora de brilhar no saltinho do privilégio e DE FATO ser aliado(a)!
Os “argumentos” desses grupos conservadores seguem a cartilha das fake news: pegam uma meia verdade, jogam um tanto de pânico moral (se der pra meter as “nossas crianças” no meio, melhor ainda), tiram dados do contexto ou criam causalidades que não existem. E é muito difícil dar conta de toda a desinformação e senso comum das análises de pires, principalmente quando elas contam com o apoio e incentivo (inclusive financeiro) dos donos da bola.
Ainda assim, insisto e convido quem chegou até aqui a encararmos tudo isso como uma oportunidade de despertar para a resistência coletiva. De aprender com os erros do passado, aceitando, porém, que a luta é no presente.
“É preciso atrair violentamente a atenção para o presente do modo como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.”
Que possamos, então, tomar fôlego. Retornar à indignação necessária. Reconstruir o tecido social que nos torna inquebrantáveis. Não porque seja fácil ou confortável, mas porque não há outro caminho que não seja o da reconstrução do tecido social.
Continuará sendo árduo, doloroso, cansativo, demandará de nós muita paciência (mais?) e resiliência, mas é a única saída possível.
Mera assimilação é nosso inimigo que nos seduz a participar de aparelhos que realizam com mais eficácia o negócio de suprimir mudanças. - Angela Davis
Com amor, Tay ❤
Atenção: não estou me referindo aqui a ações e providências importantes tomadas, por exemplo, por coletivos como a Antra que protocolaram medidas legais para assegurar que a Meta cumpra a legislação brasileira em suas políticas e práticas. Refiro-me ao compartilhamento vazio, repetitivo e saturado de supostas análises que, a bem da verdade, buscam mesmo engajamento algorítmico e “mostrar que se está por dentro” e “sabendo sobre o assunto” além de, é claro, dar aquele pitaco básico.
A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. Milton Santos (não, neste espaço, mandamos a ABNT para aquele lugar e citamos do jeito que nos dá na telha, bem como compartilhamos links de fonte aberta #chupamundo)
A importância do discurso na comunicação corporativa sobre Diversidade e Inclusão (D&I)
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