Sobre redes de apoio e trocar o pneu do carro andando…
Dos inúmeros desafios que temos em relação ao posicionamento dos cuidados como pilar de uma democracia inclusiva e sustentável, vejo dois…
Dos inúmeros desafios que temos em relação ao posicionamento dos cuidados como pilar de uma democracia inclusiva e sustentável, vejo dois centrais ainda tão distantes quanto urgentes: (i) o moralismo personalista que permeia essas discussões; e (ii) a dificuldade de compreender que precisaremos trocar o pneu com o carro andando.
Quando pediram minha opinião sobre “a influencer de esquerda levar a babá para o curtir o Carnaval”, muito desses dois pontos estão presentes.
Há questões e camadas da nossa sociedade escravagista que sempre precisam ser incorporadas na reflexão sobre o trabalho doméstico remunerado. Há desafios e dores que necessariamente atravessam as experiências de mães de crianças pequenas e que devem ser levadas em consideração em qualquer análise. E há, também, o moralismo e o conservadorismo enraizado, que julga a partir da ótica do cuidado como algo do campo do afeto apenas ou, como um trabalho qualquer, e não um recheado e atravessado por relações e afetos muito próprios. Igualmente equivocado.
Disseram que o problema era chamar de “rede de apoio paga”. Ou fazer o post agradecendo. Que a babá provavelmente deixou seus próprios filhos e família para estar ali, ou, ainda, que ela não teria escolha real para dizer não.
Todas essas inferências sobre uma relação (neste caso) de trabalho, são apenas especulações e não atacam o centro da questão: o cuidado é um trabalho essencial, e precisa ser bem remunerado. Mais: em uma sociedade tão desigual, poucas pessoas (pouquíssimas eu diria) tem realmente a opção de escolher qualquer coisa nas suas relações de trabalho.
Dito isso, qual teria sido a reação, se a “rede de apoio” não fosse paga? Se ela tivesse levado a própria mãe para a mesma finalidade? Por que o cuidado “por amor”, o “apoio” por laço sanguíneo é aceito de forma irrestrita, ao invés de se discutirem mais modelos que permitam a centralização do cuidado, de modo que mães (e cuidadores em geral), tenham direito também à diversão e lazer, sem que se negligenciem os direitos de quem merece cuidado integral de qualidade?
Rede de apoio, é uma categoria que tenho questionado cada vez mais na minha reflexão acadêmica, porque ela parte da premissa de que a responsabilidade pelo cuidado é primordialmente parental, em geral biológica, hetero e cis, e invariavelmente deve ser gratuita. Lembrei daquele texto horroroso “não tenha filhos se você não tem tempo” do pai influencer famoso.
Se não se pode contratar uma pessoa trabalhadora, que seja bem remunerada e que tenha seus direitos trabalhistas assegurados, como mudaremos a régua da desigualdade de gênero? Como queremos que Jacindas, e tantas outras mulheres mães continuem em suas funções profissionais absolutamente demandantes e, ao mesmo tempo, cuidem – sozinhas ou, no máximo com o “apoio” não pago de familiares? Certamente será, como tem sido, às custas da saúde física e emocional dessas mães e, mais ainda, da perda de excelentes profissionais. Mais: quando trazemos o debate conceitual para o moralismo, perde-se uma energia que deveria estar sendo gasta na demanda social pela visibilidade, valorização e boa remuneração de todas as tarefas de cuidado. Inclusive para que Estado e setor privado assumam também esse BO.
Cuidado pago é cuidado. Cuidado não pago é cuidado. Cuidado oferecido pelo Estado é cuidado também.
As nuances, diferenças estruturais e camadas é que queremos problematizar, seja enquanto realidade, seja enquanto horizonte.
Democratizar, desfamiliarizar e desfeminizar o cuidado, de preferência a partir de políticas públicas e privadas de cuidado integral é o objetivo final. Garantir condições justas e boa – excelente – remuneração para pessoas cuidadoras é o pleito. Não exigir que as mães (e mesmo pais) façam tudo sozinhos, sem contratar cuidados ou, que quando o fazem, este cuidado seja considerado “terceirização” ou mesmo “apoio”.
A. gente precisa aceitar que iremos trocar o pneu com o carro andando se queremos mexer a régua da desigualdade e chegar ao destino logo.