Quero contar uma história sobre a ganância.
E é uma história também sobre dor, solidão e impotência, mas que, dependendo de por onde olharmos pode ser também uma história de superação — e que frequentemente é instrumentalizada para defender a meritocracia — punitivismo, ou uma história de esperança.
No fim é uma história sobre politização e coletivização dos afetos e da vida.
DOR E SOLIDÃO
Ela começa com uma criança periférica. De preferência muito inteligente, uma inteligência acima da média, claramente. Ela é comunicativa e bonitinha e as pessoas gostam dela com facilidade.
Ela supera inúmeros desafios e obstáculos na vida e faz do limão uma limonada, tornando-se bem-sucedida. Às vezes os meios para chegar lá são facilitados por contatos e conexões generosas. Às vezes ela pega atalhos, mais ou menos moralmente questionáveis. Pode ser que ela tenha mentido no currículo, ou o seu endereço. Em alguns casos ela usou seu capital sexual para seduzir a pessoa certa. Em outros foi a lábia convincente e ter muito pouco ou nada a perder o que fez se emaranhar pelo mundo do poder e lá se estabelecer até que comece sua derrocada. Ou não. Muito depende do quanto esta criança, agora adulta, saberá se adaptar ao jogo dos grandes. O quanto ela deixará para trás quem ela foi, quem ela gostaria de ter sido e, principalmente, que ela saiba o lugar dela como peça neste xadrez no qual ela é — por mais parruda e fodona que se ache ao olhar-se no espelho — apenas o peão.
A ganância, para judeus, islâmicos, budistas e cristãos, é um dos maiores pecados e a principal emoção a corroer a alma. Falta dizer talvez, com mais clareza, que é ela também que sustenta basicamente toda a estrutura social e econômica que governa nossa vida nos últimos vários séculos e, especialmente, no capitalismo financeiro ou monopolista em uma ordem neoliberal que busca, para ficar em Dardot e Laval (2016), vincular diretamente a maneira como um homem (sic) “é governado” à maneira como ele próprio ‘se governa’”.
IMPOTÊNCIA
Na sexta-feira, ao embarcar de volta para casa, no caos paulistano usual, me deparo com um menino de uns 20 e poucos anos com alguns chocolates para vender e um olhar de “escuta o que eu vou te dizer por favor”.
Eu estava ouvindo Gloria Groove no último volume e bastante apressada, mas parei, tirei o fone, porque procuro responder olhando no olho e não no automático a todo mundo que fala comigo. Ele me disse que não queria dinheiro, mas que precisava comprar coisas para sua bebê e que se eu pudesse apenas pagar algumas coisas que ele havia separado na farmácia ao lado do embarque, seria muito grato.
Obviamente que sim. Fomos em direção à entrada de Congonhas e o segurança nos para com aquela cara de “de novo irmão” para ele e começa a argumentar que ele não poderia entrar comigo.
- Por que não moço?
- Não pode moça, ele já sabe.
- Mas não pode por que? O aeroporto é um lugar público. Não tem nada que me convença que eu não posso entrar com uma pessoa e ir à farmácia com ela.
- A senhora pode, ele não!
- Mas ele está comigo…
Bate-boca segue, o menino claramente chateado e argumentando incisivamente com o segurança começa uma aula de consciência de classe falando que “eu não posso entrar porque eu não tenho dinheiro, se eu tivesse dinheiro, ninguém tava nem aí se eu tava roubando ou não”.
Bem, simplesmente catei o menino pelo braço e fomos. Compramos dois pacotes de fralda, uma lata de leite ninho e alguns lencinhos umedecidos. As moças da farmácia claramente o conheciam. O chamaram pelo nome e perguntaram como estava a filha dele. E, baixinho, me disseram que os seguranças encrencavam muito mesmo, mas que ele só comprava coisas para a bebê.
Eu segui para o embarque e ele voltou para a vida dele.
Embarquei com um nó na garganta. Será que os seguranças fariam algo com ele? E como seria para aquele segurança se toda “madame” resolvesse enfrentá-lo o fazendo descumprir ordens? Será que ele seria demitido pela minha postura, ainda que justa?!
Segurança, o menino que me pediu ajuda, as atendentes da farmácia — e até eu — muito mais próximos do que a maioria de nós gosta de imaginar.
Cheguei em casa com este nó na garganta e me sentindo impotente, quando voltar a Congonhas vou procurar o segurança e vou procurar o menino para quem, na correria, acabei esquecendo de pedir o nome.
SUPERAÇÃO E A FALÁCIA DA MERITOCRACIA
Hoje de manhã, assistindo “Máfia da Dor” (no Netflix, excelente história e atuações, vale a pena!), mais uma vez senti essa impotência.
Quando você sai do nada, quando sua vida está imersa em desespero e agonia, é muito muito mais difícil ser “a pessoa que faz a coisa certa” em um sistema que é feito para perdermos sempre. The house always wins, no casino e no capitalismo.
Existem executivos (e executivas) para os quais uma hora a corda arrebenta, seja psíquica e moralmente, seja a pressão legal e existem os que se autojustificarão a vida toda. Existem os “lobos de Wall Street” e existem as Bel Pesces e Anna Delvys, Billy McFarlands, mas no final das contas, todas e todos estamos inseridos em um contexto em que o único jeito de “quebrar a casa” (ainda que temporariamente e em benefício próprio) é usar sua principal arma contra ela mesma: a ganância desenfreada.
Por outro lado, o que também parece fazer as pessoas do início da minha história caírem, ao contrário daquelas que desde sempre jogam o jogo, nascem no jogo e mantém o jogo vivo com todas as suas conexões políticas, financeiras e o bom e velho punitivismo penal, é acharem — em algum momento — que elas pertencem a este mundo onde elas são apenas peões.
Por mais que se goste de pensar o contrário, assalariado (ainda que ganhe 30, 40, 100 mil reais por mês ou até mais) ainda pode ser apenas um peão neste jogo da ganância que sustenta a desigualdade social que financia — aí sim — os donos do tabuleiro.
O que gostamos de chamar de Executivos, colocando em um bolo só, gerentes que ganham 15 mil e CEOs que ganham 200, são em sua maioria pessoas também reféns do capitalismo e pautadas em suprir suas “necessidades”.
Necessidades criadas, inventadas, plantadas por um sistema perverso que cobra ascensão, work hard play hard, no pain no gain e inventa desejos para oferecer “soluções” e que são frequentemente sustentadas no que Foucault chama de “tecnologias do eu”. Ainda que ele tenha morrido antes de poder analisar as tecnologias do eu no neoliberalismo, abriu um horizonte para que inúmeros autores e autoras o fizessem com potentes reflexões que nos servem insumos maravilhosos para refletir sobre os fracassos deste modelo, as grandes que o sustentam e, principalmente, as soluções (e os limites delas) que podemos pensar para subverter essa lógica que, no final do dia, passa com seu trator em cima de cada um e cada uma de nós.
É fato que muita gente, assim como eu, ascende socialmente e depois se transforma em papagaio da meritocracia (não eu, ou ao menos not anymore!) e se transforma em token de quem manda no jogo e precisa de exemplos pontuais que façam, por exemplo, uma parcela significativamente esquisita da população de um dos países mais desiguais do mundo ser contra a taxação de grandes fortunas e trabalhadores e trabalhadoras serem a favor da redução de direitos trabalhistas.
Ainda assim, existem muitas pessoas sérias e comprometidas, inclusive nos altos escalões e, todas elas, são disputáveis para entenderem que ninguém está segura quando toda a sociedade não estiver segura e tendo uma vida digna de ser vivida.
A prisão de executivos, sem reflexão sobre quais mecanismos e gatilhos estruturais levam àquele tipo de violação, não resolve bulhufas.
Eu não saí do mundo corporativo porque eu estava rodeada de grandíssimos filhos da puta. Muito pelo contrário. Aliás, essa espécie é comum em qualquer classe social ou rolê, inclusive na militância por direitos humanos e diversidade.
Eu olhava para a vida do meu chefe, um cara incrível por sinal, e pensava que eu não queria aquilo para mim. Não queria ser refém de um emprego em que trocentas pessoas e seu padrão de vida dependiam da minha renda e que me faria ter que aguentar qualquer merda de ex-trainee que acha que vai dominar o mundo com seu sapatênis. Nem queria a pressão por resultado que te faz ficar sem dormir por ter fazer milagre com seu orçamento, incluindo ter que mandar seu colega de café embora, ou aquela mãe de família, ou pensando se o próximo será você. Não queria que chegasse o dia, como já vi acontecer com muito mais gente do que gostaria, em que eu passasse de “talento” e “high potential” para o olho da rua porque qualquer gringo chegou aqui e achou que eu não tinha as “skills” necessárias.
Cansei de ver homens com mais de 50 anos, praticamente irrecolocáveis no mercado serem demitidos sem mais nem menos e ficarem sem chão. Cansei de ver mulheres que se tornam mães e vão sendo lentamente excluídas até serem expulsas e terem uma dificuldade enorme para recuperarem um posto equivalente, isto quando conseguiam.
O sistema é muito maior do que meia dúzia que eventualmente são presos — ou demitidos — para satisfazer anseios punitivistas da população e servirem de bode expiatório para os donos da casa.
Meritocracia é a mentira que inventaram para despolitizar o sucesso e a vida.
Colonizar este senso de “eu” que prefere — quase sempre — desviar o olhar.
Porque sim, olhar demais, escancara a injustiça e expõe a nossa fraude de mérito individual.

PUNITIVISMO
A prisão — ou a ameaça dela — nunca serviu para impedir ninguém de cometer crimes.
Bem poucos irão deixar de querer os bônus (e aqui não me refiro apenas ao contracheque, mas sim a todo o status) que o oferecidos em troca do nome na procuração por medo de ser preso, tanto quanto é difícil convencer o jovem que entra para o tráfico com as benesses que isso lhe proporciona (ainda que por um curto período de tempo) por medo de morrer ou de ser preso.
O problema não é o jovem que entra para o tráfico e nem o Executivo que acredita ser necessário obter resultados a todo custo. O problema segue sendo a ausência de um sistema que humanize a todos nós proporcionando dignidade humana para todos e não pautado em diferenciação social e status.
O punitivismo, já está mais do que provado, não é freio social suficiente para nada.
Mas o quê é então?
Consciência de classe.
Politização dos debates.
De todos e todas nós!
Dos pobres e minorias que não se enxergam assim e votam contra seus próprios interesses e de toda a sociedade.
De assalariados ricos e pequenos e médios empresários que acham que porque eles tem mais dinheiro hoje eles estão do outro lado. Não estão. São apenas moeda de troca. Que podem ser entregues como moeda de troca na primeira oportunidade.
A vida e o mundo não são um filme de Os Vingadores em que o vilão tem essa cara monstruosa e maléfica e não somos, na verdade, todos nós que aceitamos o que queremos de um sistema violento por si só e jogamos aos leões o que for preciso para aplacar a nossa consciência e nos fazer acreditar que nós sim, somos muito melhores!
ESPERANÇA POLITIZAÇÃO E COLETIVIZAÇÃO DOS AFETOS E DA VIDA
Não lembro como foi que no final tudo deu certo, mas quando eu tinha uns 10 ou 11 anos, nós quase precisamos ir morar em uma ocupação quando estávamos na Itália.
Sei que tivemos muita sorte muitas vezes, que o nosso locador Signor Ottaviani perdoava muitas dívidas e também muitos barracos, que ir ao mercado era sinônimo de passar vontade e que a minha mãe trabalhava incessantemente em vários empregos e mesmo assim a gente precisava de ajuda. Ajuda dos irmãos da igreja, dos vizinhos do bairro e do Estado.
Muitos anos depois, já em Curitiba, já na faculdade, fiz um trabalho em grupo sobre o MST e visitamos um assentamento aqui perto. A imagem das famílias, das mesmas crianças que eu fui nunca saiu da minha cabeça. Em um universo paralelo eu poderia ter sido aquela menina estudando na mesa de uma cozinha improvisada. Em que momento o destino me separou pro lado dos que são “aceitáveis”? Em que momento me foi dado o privilégio de estar do lado da mesa comendo e bebendo com os que se sentem confortáveis para taxar essas pessoas de vagabundas e culpá-las pela violência que sofrem?
Me lembro bem dos sapos engolidos ouvindo de colegas o quanto “as pessoas queriam tudo de mão beijada”, “que esses vagabundos precisam parar de reclamar e correr atrás”. Mesmo que essas mesmas pessoas nunca tenham tido que trabalhar para se sustentar ou não tenham a menor ideia do que significa escolher entre comer e pagar o aluguel, muito menos o pânico de poder estar na rua a qualquer momento. Elas genuinamente acreditam que são merecedoras de todos os seus privilégios e que, portanto, as “outras” são responsáveis por sua própria miséria e ninguém lhes deve nada.
Sempre que penso na Tayná que quase foi morar em uma ocupação, me pego pensando em como as pessoas que me admiram em alguma instância e me usam de exemplo de pessoa dedicada e guerreira se sentiriam se soubessem de onde eu vim? Será que teriam se aproximado de mim e me amado se eu fosse efetivamente uma garota de ocupação?
Fico pensando no menino que não podia entrar comigo no aeroporto. Frequentemente me pego pensando na menina ruiva estudando na cozinha improvisada do assentamento. Tomamos um café e eu fiquei admirando ela, toda sardentinha com seu caderno encapado de verde e naquela altura da minha vida, do alto dos meus 17 anos e meio eu já me sentia muito distante dela e do destino dela. Eu já tinha me tornado o projeto de Tayná que sou hoje e já estava na trincheira do lado de cá e me permiti ter pena. Quanta petulância!
E é por isso que, preciso constantemente e intencionalmente lembrar a mim mesma que, junto com a transformação de realidades, é preciso semear a consciência individual e coletiva de que a forma como a sociedade está estruturada precisa ser radicalmente transformada para que possamos viver em um mundo genuinamente justo e igualitário.
Se queremos de fato transformar realidades, modificá-la e impactar vidas é preciso que se pense a curto, médio e longo prazos e isso significa lembrarmos que sucesso individual não muda o mundo e que mais importante que ascender é transformar: mentes, culturas, corações. Precisamos resistir à autocontenção e auto-indulgência que se acomodam em um lugar apolítico e acrítico.
Ao mesmo tempo, é preciso viver um dia de cada vez estando mais presentes e conscientes para não deixar a euforia nos tirar de prumo.
Não há resolução fora do coletivo. Não há como frear a autodestruição de maneira individual.
Não há preservação fora da esfera política, da negociação e da habilidade de coalizão e articulação. O fortalecimento do multilateralismo, de preferência renovado e descolonizado, nunca foi tão importante, ao mesmo tempo em que nunca esteve tão fragilizado.
O neoliberalismo coopta também as conexões, afetos e senso de coletivo para estraçalhar os laços sociais que nos tornam mais fortes, especialmente o da solidariedade.
Não podemos deixar a desesperança nos enfraquecer, tanto quanto não podemos nos entregar ao purismo de um otimismo ingênuo, não pragmático e que é, no fundo, desmobilizador.
Em “Hope without Optimism” Eagleton (2021) nos apresenta a articulação da esperança como um afeto que reconhece as adversidades, ainda que busque possibilidades de mudança e melhoria. Em vez de uma atitude otimista baseada na negação dos desafios, frequentemente superficial e simplista da realidade, a esperança fundamentada na compreensão profunda das complexidades da vida, pode ser mais realista e transformadora desde que, é claro, permaneça comprometida com a possibilidade de um futuro melhor.
E se há esperança, senhoras e senhores, há pelo que lutar, há pelo que sonhar, há pelo que trabalhar e sim, há também pelo que ser grata.
Deixo aqui um convite a todas as pessoas que chegaram até este ponto (ufa!), para exercermos mais e mais da gratidão-responsabilidade. Este termo, que aprendi com a amiga (e grande intelectual) Sabrina Fernandes, nos faz lembrar que é no coletivo que precisamos operar, que é a estrutura que precisa estar sólida para a casa não desmoronar.
Celebrar as vitórias, os dias bons, os afetos potentes, é a chave para não ser consumida pelo pessimismo e o derrotismo que toma conta quando olhamos apenas para o que ainda falta.
Reconhecer o privilégio, aceitar a sorte, agradecer a oportunidade e assumir a responsabilidade!