Com amor, Tay ❤️(extra) - Anora: minhas reflexões sobre gênero, classe e desejo
Surto, Tretas e Biscoitos (Cafeínados)☕🔥🍪
“Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”. Maura Lopes Cançado
Escrevi esta versão extra da News ouvindo minha mais nova playlist queridinha (que criei), para um ensaio fotográfico que farei esta semana (não se preocupem que logo vocês enjoarão de mim falando sobre isso, por enquanto segura aí!) e que dialoga muito com todas as reflexões que Anora provocou em mim, que não são novas, não são inéditas, não são exclusivas, mas estão pulsando aqui.
Cada uma das quase 300 músicas que incluí nela falou fundo comigo em algum momento, e/ou me faz viajar no tempo-espaço dentro e fora de mim (sim! minha vida tem trilha sonora!):

first things first:
muitas boas análises às questões apresentadas direta ou subliminarmente sobre trabalho sexual em Anora já foram feitas por excelentes pesquisadoras, militantes e trabalhadoras sexuais — inclusive as que não necessariamente gostaram do filme — algumas das quais deixo ao final do texto, junto com indicações de pessoas que vale a pena seguir sobre estes temas. Isto, é claro, para quem quer fugir do senso comum raso e antifeminista. Agora, se você prefere estar do mesmo lado que as seguidoras da Damares, melhor pular este texto e poupar seu tempo!
não vou entrar no mérito (a não ser agora em poucas linhas) do péssimo argumento da vitória de Mikey Madison ser “a prova de que a Substância é real”2 por algumas razões, sendo a principal delas #nãosouobrigada e também por ter um ranço enorme de todo argumento que “brota” e viraliza em minutos, a partir de posts rasos feitos por “especialistas” de última hora3.

como o óbvio também precisa ser dito (de preferência em LED), aí vai: o que trago aqui é a MINHA (CAPS LOCK SIM!) leitura, os meus sentimentos e, claro, reflexões que o filme, como um todo e as discussões sobre ele, reverberaram aqui dentro. Claro que a minha leitura é também situada (hello Haraway!), localizada naquilo que me constitui, na minha formação, experiência e, obviamente influenciada por tudo o que li antes de ver o filme, seja para concordar ou discordar ou apenas ir para outro lugar. Além, é claro, de algumas elocubrações sobre sexo que pouco - ou nada - tem a ver com Anora.
o fato de eu ser feminista, (ex - #RIP) pesquisadora, ativista e profissional que atua(va?) com direitos humanos não significa - MESMO! - que eu queira ficar vendo/falando/pensando sobre esses temas o tempo todo. Ao contrário, uma das coisas mais cansativas sempre foi chegar num bar ao final de um dia em que passei o o dia todo falando sobre gênero e direitos humanos e as pessoas quererem falar justamente sobre - PASMEM - gênero e direitos humanos.
e pelo love of the goddesses parem de achar que tudo que uma ativista assiste/consome/curte tenha que entregar consistência, um tratado político ou um manifesto socialmente impecável.
Pior ainda quando querem cassar sua carteirinha (kkkkryyying) porque “como assim você é feminista e [INSIRA AQUI QUALQUER BOSTA QUE SUPOSTAMENTE VOCÊ NÃO PODERIA FAZER]??!!??!!
Claro que arte é instrumento do fazer político, social e de construção cultural. Claro que pode - e deve - ser analisada por uma perspectiva de gênero, classe e raça críticas4, e inclusive já existe gente fazendo isso de forma muito séria, mas assim, nem tudo precisa ser profundo, nem tudo precisa ser analisado e muito menos por todo mundo. Arte pode ser apenas entretenimento5.
Sobre isso (e sim, eu sei que estou me alongando e o texto em si nem começou… #medeixa #vocêsquelutem), me identifiquei 100% com o que a Susan Bordo escreveu em sua coluna no The Metropolitan Review (que aliás está deliciosamente bem-humorada e ácida, ainda que, ao contrário dela, eu não tenha gostado de Baby Girl):
I’m never going to be swept away by films that are treatises, feminist or otherwise. Tell me a good story whose ending I can’t predict. Make me weep. Make me smile with pleasure. Turn me on. Give me one delicious image. Let me leave the theatre pondering what I’ve just seen. Break my heart. Just don’t lecture me.
(…)
In general, though, like my early idol Pauline Kael, I don’t go for movies that aim at my mind (I’ve been an academic most of my life, I’ve had enough of that, thank you) as much as those that wake and stir up emotions other than fury (I watch the news for that.) Movies that “get me in the feels,” as younger people say.6
Deixo claro também que esta não é uma crítica cinematográfica. Não sou especialista em cinema, sei do que gosto e do que não gosto e não tenho pretensão de fazer uma análise técnica deste ponto de vista, mas também deixo lá no final, algumas leituras de que gostei, do baixo da minha ignorância.
Last, but not least:
se você tem uma leitura diferente, foi impactada de outra forma, ou apenas não gostou de Anora, não considere nada do que estou escrevendo aqui uma crítica a você ou qualquer tipo de indireta.
Agora, se você não gostou por razões que a colocam ao mesmo lado das seguidoras de fascista negacionista ou carola conservadora, aí você pode ir mesmo se f0d3r em algum canto e, convenhamos, não tem muito o porquê continuar aqui.

e infelizmente, este tipo de “análise” não é muito diferente em diversos textos ditos feministas, mas que no fundo tem conclusões muito similares.
Enfim, não estou aqui para convencer ninguém de nada, ta?!!?
Bom, as discussões sobre Anora me alcançaram bem antes de eu conseguir assistir ao filme, ganhador de 5, das 6 indicações que obteve ao Oscar (todo mundo já sabe quais são, e se não sabe o link tá aqui).

O primeiro texto que li sobre (que foi também a primeira referência que tive ao filme, visto que eu estava bem alienada sobre tudo o Oscar, a não ser pela torcida à Fernanda e ao Ainda Estou Aqui #semanistia) era extremamente conservador e moralista. Assim como o segundo e o terceiro (e talvez o quarto...).
Depois da premiação, aliás durante, o conteúdo que me foi sendo apresentado pelo algoritmo ficou cada vez pior em uma velocidade absurda. Muito, é claro, por conta do delírio coletivo da fanbase brasileira que acreditava que Fernanda Torres havia perdido o Oscar para a Mikey Maddison. O fato é que estava difícil distinguir textos de pessoas do nosso campo de #tradwifes e seguidoras do #inelegível.
Textões e textinhos esbravejando que “se fosse para perder, que fosse para a Demi Moore”, atacando a Mikey em suas contas e nas da Academia, xingando a atriz, o diretor, os atores e nos fazendo passar muita vergonha internacional, a ponto de a Fernanda Torres (rainha!) ter que se pronunciar pedindo que parassem de xingar a menina.
Daí para a frente, foi só para trás. Até que me deparei com o auge da péssima análise em uma coluna da M. Lacombe7, com a qual costumo mais discordar do que concordar, mas que ainda assim conseguiu me surpreender com um inesperado (ao menos para mim) puro suco de putafobia8
Comecei, então a procurar ativamente críticas mais diversas e o que as minhas referências no tema, estavam falando sobre Anora. Os algoritmos, agora melhor treinados, começaram a me apresentar uma abrangência maior, mais densa e fundamentada de análises, ainda que bastante diferentes entre si. Ufa!
Pois bem, finalmente consegui ir ao cinema, sozinha, com calma, tirar minhas próprias conclusões e vim aqui compartilhar com vocês.
Agora sim, vamos lá!
Espero que você ainda esteja aqui comigo :)
Apesar de ter conhecido “o sexo” pelo abuso e a violência (como infelizmente acontece com um número muito maior de meninas do que costumamos admitir), minha relação com o sexo sempre foi muito boa. Excelente eu diria. Eu sempre gostei muito - e gosto cada vez mais conforme vou me liberando dos tabus que também moldaram minha visão sobre o assunto.
No entanto, assim como todas as meninas da minha geração, cresci vendo princesas sendo resgatadas e recatadas (e vilãs sensuais e livres), mocinhas de novela e filmes “transformando” os homens errados e se diferenciando das “outras”, heroínas de romances, da mesma forma, eram mulheres diferentes, as que fazem um homem se apaixonar por suas qualidades e inteligência, não pelas armadilhas da “sedução”.
Mulheres eram representadas como o sexo passivo, objetificadas ou fixadas em estereótipos que oscilavam entre a imagem de mãe (“Maria”) e a puta (“Eva”). Essas imagens repetidas das mulheres foram consideradas como distorções objetificadoras da realidade, com impacto negativo sobre as espectadoras mulheres. As feministas clamaram por imagens positivas das mulheres. SMELIK, Anneke. Feminist film theory. In COOK, P.; BERNICK, M. The cinema book. London: London British Film Institute, 1999, p. 353-365.
Some-se a isso minha desesperada carência e necessidade de ser amada, de construir a família emocionalmente estável que nunca tive e tá feito o bolo com a receita mais antiga que existe para aprisionar mulheres.
Vivi por muito tempo esse dilema interno entre gostar de sexo e querer ser uma “mulher que se dá valor”. Minha sorte foi ter encontrado logo cedo alguém que me amava e, ao mesmo tempo, me desejava intensamente (e eu também!) e com quem eu pude ir me soltando. Ainda assim, ficava presa a esse estereótipo de mim mesma: inteligente, trabalhadora, “not like the those girls”.
Voltarei a isso mais para frente… ou em outra News porque esta já está indecentemente enorme… o spoiler está aqui, mas também tem muita coisa ainda para elaborar sobre meu resgate dessa versão livre, que faz poledance, twerk, posta fotos rebolando a raba, fala de sexo abertamente e incentiva as amigas a comprarem vibradores.
Chame uma mulher de qualquer coisa, mas não de puta9!
Muitas vezes, na visão de quem não exerce o trabalho sexual, o papel da prostituta parece ser aceitar o que nenhuma mulher dita decente aceitaria. De práticas sexuais esdrúxulas a estupro e espancamento, a prostituta seria uma mulher sem direito à proteção contra abusos e violência. Monique Prada
Ser chamada de puta, vagabunda, rameira, fácil, dada, sempre foi A ofensa para uma mulher. Só perde para xingar a mãe de um homem com esses mesmos adjetivos. E nós mesmas acreditamos por tanto tempo nesta artificial divisão hierarquizada entre mulheres boas e más, que internalizamos esta aversão, o asco, o medo de ser confundida.
Além disso, a literatura pseudo científica e a própria ciência tradicional (além da igreja, claro!) sempre se empenhou em corroborar e fundamentar as desigualdades na natureza, na biologia - que a partir de determinado momento histórico se torna a nova e mais importante religião - para afirmar que homens são de marte e mulheres são de vênus e, por consequência lógica, homens fazem sexo e mulheres fazem amor, não é mesmo?!
Logo, uma mulher que goste — demais — de safadeza, só pode ter algum desvio (de caráter ou genético mesmo). Da mesma forma, homem que “nega fogo”, “brocha”, que não está sempre com vontade, que não “comeria até um buraco na parede”, não pode ser “normal”.
Tudo isso não passa do que chamamos de neuromitos e neurossexismo10 (assim como já tivemos o monstruoso racismo científico como fundamento de política pública!) fundados no que, nos estudos de gênero, desde seus primórdios, é fundamentado no determinismo biológico.
Um excelente exemplo de como o determinismo biológico foi usado historicamente para oprimir e violentar mulheres é a relação do feminino com distúrbios psiquiátricos, mais notadamente a Histeria. Em seu livro O Hospício é Deus, a escritora Maura Lopes Cançado relata seu período de internação em um Hospital Psiquiátrico e ele é uma boa amostra (corroborada por muitos outros documentos históricos que ilustram o tratamento dado a mulheres tidas como “subversivas”.
Estes eram alguns dos sintomas incluídos nos prontuários das mulheres diagnosticadas como histéricas e que precisavam de internação:
gênio independente
não obedecia ao pai
separou-se do marido
escrevia livros
trabalhava muito
era preguiçosa
apaixonou-se por um rapaz (imagina dar!)
cantava o dia todo
desobedeceu ao patrão
reclamava do salário
inclinações políticas subversivas
Não sei vocês, mas eu dou ✅ em todos os requisitos, menos ser preguiçosa, o que também vai depender muito do dia.
“A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo “a igualdade dentro da diferença”. Essa fórmula, que fêz fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações.” Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo Fatos e Mitos
Ao contrário do que eu havia lido (e como eu já imaginava pelo tom dos textos), Ani (como ela gosta de ser chamada) não romantiza o trabalho sexual, ela romantiza e se perde de si justamente quando se entrega a um ideal do casamento e da mudança de vida que poderia vir com este.
A protagonista não é uma vítima passiva, nem uma heroína, ou uma mocinha “inocente”. Ela se apresentou para mim como uma mulher complexa, ora menina, ora mulherão, ora cheia de esperteza, ora super ingênua. Não somos todas assim?
Cheia de nuances, Ani desafia a ideia de que o trabalho sexual é sinônimo de degradação. E é aqui que o filme se conecta com uma das minhas pautas mais caras: não se contentar com o argumento mais óbvio, mais confortável sobre o que está sendo apresentado.
O moralismo que cerca o trabalho sexual é um exemplo clássico de como o senso comum pode ser enganoso e, pior, terreno fértil para toda sorte de violência.
No início do filme, quando ela nos está sendo apresentada, o que vi foi uma trabalhadora. Atendendo seus clientes, fazendo seu corre de um lado para o outro, fofocando com algumas colegas, antagonizando com outras, criando vínculos de amizade e piadas com e sobre o chefe, fazendo uma pausa e sendo interrompida para atender outro cliente e ficando pistola por isso, mas indo mesmo assim pois #boletos.
Nada muito diferente do que acontece em absolutamente todos os trabalhos. Quer dizer, tem sim algo muito diferente: o sexo e o dinheiro atrelado a ele. Ela trabalha semi nua, dançando no colo de seus clientes e recebendo notas em espécie por isso. Ela usa sua sensualidade, beleza e soft skills (de falar aquilo que eles querem ouvir, por exemplo) tal qual eu uso as minhas habilidades para vender meu serviço intelectual, meus conhecimentos, minha liderança e tal qual trabalhadores em fábricas, escritórios, na estrada dirigindo caminhões e, por aí vai.
“Ahhhh pelo amor de deus, como você quer comparar isso com TER QUE FAZER SEXO POR DINHEIRO, MEU DEUS DO CÉU!!!” — é o que sempre recebo na DM ou em comentários quando faço essas analogias (e as especialistas ou trabalhadoras no campo mais ainda!).
A sex worker may describe a bad experience as a labour-rights violation, sexual abuse, or simply a shitty day at work. Regardless, their testimonials are not merely symbols to be interpreted by non-prostitute feminists, especially not as part of rallying for the criminalisation of their income. - Molly Smith e Juno Mac em Revolting Prostitutes
Bom, tem gente limpando privada em banheiro nojento de beira de estrada, sem equipamentos adequados de segurança, fazendo trabalho pesadíssimo que lesiona coluna, causa acidentes frequentes com perdas de membros, da saúde física e mental, sendo abusada e assediada por chefes e patrões que, com certeza, está em condição muito mais vulnerável que uma parte das trabalhadoras (especificamente o perfil de trabalhadora que Ani interpreta).
“Ahhhh, mas a maioria das trabalhadoras sexuais não está nessas condições. Você não pode achar que uma garota de programa de luxo represente a realidade da grande maioria das profissionais do sexo que são [INSIRA AQUI TUDO QUANTO É TIPO DE TRAGÉDIA] e que [INSIRA AQUI TODO TIPO DE TRATAMENTO PATERNALISTA E CONDESCENDENTE].”
Não mesmo! Assim como a maioria das pessoas trabalhadoras em QUALQUER área não é CEO, diretor, gerente, com altos salários, benefícios e oportunidade de ESCOLHER o que fará, por quanto e onde. A bem da verdade, a maioria de várias categorias vulneráveis (domésticas, para citar apenas uma) sequer é CLT, o que significa não ter acesso a direitos básicos trabalhistas e previdenciários.
E a gente ta lutando por MAIS ou MENOS direitos para essas categorias?
Por que, então, o estigma (que as acompanha infelizmente em todas as esferas da vida) só recai sobre as trabalhadoras sexuais? Como diz a frase de Melissa Grant, que coloquei na primeira foto de Anora, “não é o trabalho sexual que nos degrada, mas aquelas pessoas que usam nossas experiências para justificar a degradação.”
Como podemos argumentar que descriminalizar (ou, melhor ainda, legalizar) o aborto não faz com que as pessoas abortem MAIS, ao contrário, sabemos que os dados mostram exatamente o contrário, mas para prostituição aconteceria o contrário? É um total contrassenso e incoerência.
E por que no caso do trabalho sexual as pessoas querem MENOS direitos?
Querem criminalizar, esconder, ter menos regulamentação (e consequente fiscalização) e mais punição?
E por que?
Porque quando se trata de sexualidade, à esquerda e à direita, o moralismo e os valores religiosos, higienistas, gendrificados, conservadores prevalecem e se impõem à racionalidade, aos dados e à Ciência. Pior ainda, no afã de se colocar na posição de “salvadora” comete-se o que considero a pior das violências: a desumanização alimentada e reforçada pelo estigma.
A grande tarefa do marxismo é o sexo
Aliás, uma das cenas em que mais vibrei foi justamente quando ela pede a folga para ficar uma semana atendendo exclusivamente Ivan e a gerência reclama (tão clichê), mas ela manda: “o dia que você registrar minha carteira e pagar meus direitos trabalhistas aí sim você decide quando eu trabalho ou não” e sai andando (#chupapejotização). Enquanto ela trabalha (mesmo na semana exclusiva) é quando ela tem mais agência e controle da situação. É ao tornar-se esposa que ela fica vulnerável e mais exposta.
A prostituição é criminalizada e estigmatizada não porque seja intrinsecamente ruim, mas porque desafia os valores morais e puritanos que ainda dominam nossa cultura. É mais fácil julgar uma mulher que vende sexo do que questionar o sistema que a levou a essa escolha — ou, em muitos casos, a essa necessidade.
“Banning the practice of prostitution within an appropriate legal framework is actively preventing the female class from making a decent living and turning a profit from its very stigmatization.”
― Virginie Despentes, King Kong théorie
Anora expõe essa hipocrisia e realmente não consegui enxergar o argumento de que havia ali qualquer tipo de romantização do job. O filme não romantiza o trabalho sexual, mas também não o condena. Ele simplesmente mostra a história de uma trabalhadora, em um contexto específico e não se pretende como sendo a regra de todo tipo de trabalhadora sexual em todos os casos e tipos de trabalho.
Anora é uma jovem de família de imigrantes, em Nova York, que precisa lutar todos os dias para sobreviver em um mundo que insiste em negar sua humanidade. E é justamente essa humanidade que me tocou profundamente. A forma como a protagonista se relaciona com seus clientes, com seus colegas de trabalho e consigo mesma. Ela não é uma caricatura; ela é uma pessoa real, com sonhos, medos e desejos.
E é aqui que o filme se conecta com minha própria experiência. Me emocionei pensando em como já fui julgada por minhas escolhas, por meu corpo, por meu desejo. Já senti o peso do estigma, não por ser uma trabalhadora sexual, mas porque, de uma forma ou de outra, o estigma da puta nos pegará a todas. Seja quando nos comportamos livremente, seja quando passamos a vida tentando fugir dele.
Quando eu trabalhava em uma multinacional como advogada e fui promovida, aos 28 anos, as fofocas eram que eu só podia “ter dado para alguém”. Afinal de contas, uma “menina” não seria capaz. Não importa que eu trabalhasse 15 a 18 horas por dia e toda a minha carreira tivesse sido direcionada para este momento. Não importa que o trabalho fosse a maior prioridade da minha vida e que eu já estivesse substituindo, brilhantemente e com excelentes resultados por metade do salário, o chefe que eu substituiria há uns 6 meses, tudo teria que se resumir a “para quem eu dei”.
Já naquela época eu me perguntava: e se eu tivesse dado mesmo? Que diferença isso faria quanto ao meu mérito? Quantas homens pessoas são promovidas por “trocas” muito mais antiéticas e intrigas sujas? E por que a “suspeita”, aliás, a acusação, recaía sobre mim e não sobre um ou uns supostos assediadores?
É, pois é…
Mas naquela época, eu ainda tinha muito medo de ser confundida e dediquei toda minha energia e existência para “provar” o meu mérito. Como se eu precisasse… como se adiantasse…
A arte tem esse poder: de nos conectar, de nos fazer sentir vistas mesmo em histórias e personagens que a primeira vista não são as nossas. Há um rapport sutil que nos leva de forma muito subjetiva a conexões inesperadas a partir de um texto, uma interpretação, uma imagem, um som…São sensações e não elaborações mentais as que nos ligam às histórias e suas protagonistas (e/ou coadjuvantes).
Vejam, minha defesa do filme não é apaixonada, mas é sincera. Acredito que Anora cumpre bem o papel de nos fazer pensar, sentir e, acima de tudo, refletir sobre as complexidades da condição humana, inclusive a de fazer arte com temas tabus.
Como disse no preâmbulo, um filme (ou qualquer produto artístico), não precisa ser um panfleto feminista para ser relevante. Ele não precisa defender a legalização do trabalho sexual para nos fazer questionar o moralismo que o cerca.
Anora não é um panfleto, mas pode sim ser um convite a refletir sobre as complexidades do desejo, da sobrevivência e da luta por dignidade em um mundo que insiste em marginalizar aqueles que não se encaixam em seus padrões morais.
E é aqui que volto à minha defesa da coerência argumentativa. Muito do que eu teria para falar sobre o moralismo infiltrado no campo progressista já foi dito por quem faz pesquisa no campo da sexualidade e dos estudos de gênero. E, de verdade, acho que tenho muito pouco a acrescentar na questão teórica. Ela está dada, ela é vasta, ela é profunda e está amplamente disponível, inclusive ao final desta News. O que falta é a disposição de questionar o senso comum e de enfrentar as falácias argumentativas que nos cercam.
Os “argumentos” desses grupos conservadores seguem a cartilha das fake news: pegam uma meia verdade, jogam um tanto de pânico moral (se der pra meter as “nossas crianças” no meio, melhor ainda), tiram dados do contexto ou criam causalidades que não existem.
Um bom exemplo dessa construção acontece com a história da hiperssexualização d as meninas em suposta decorrência — como efeito — das performances de artistas também hiperssexualizadas. Mais ou menos assim:
FATO A - Meninas engravidam na adolescência e este é um tema que merece atenção social.
FATO B - Divas pop sensualizam com pouca roupa na mídia.
“CONCLUSÃO”: Meninas engravidam na adolescência pois são objetificadas, são “hiperssexualizadas” e os meninos não aprendem a respeitá-las porque essas mesmas divas não se respeitam. É a “pornificação” da vida.
Cadê os dados e estudos comprovando CAUSALIDADE? Não existem! Serase que não é mais provável que a gravidez na adolescência esteja vinculada, na verdade, à pobreza, evasão escolar, falta de educação sexual, vulnerabilidade social (inclusive abuso incestuoso!) e esvaziamento de políticas públicas de saúde?
E, como vocês bem sabem (ou deveriam saber!) fake news moralista se espalha na velocidade da luz e é desesperador ver pessoas (especialmente as mais novas) repetindo “argumentos” porque “viram um documentário”, leram “um livro” (seriamente criticado pelas pesquisadoras) e se alinhando ao que há de mais conservador na nossa sociedade. Isso vale para a discussão sobre divas pop rebolativas, trabalho sexual, barrigas de aluguel, BDSM e quase tudo que envolva o corpo e o sexo.
Afinal, mulheres desejantes e vocais quanto à sua sexualidade sempre incomodaram. Puta, louca ou má, somos sempre nós as acusadas de crimes que não cometemos!
Senti um nó na garganta no ato final do filme, em que ela diz à mãe de Vanya, com a confiança de uma Olivia Pope, que “não assinou um acordo pré-nupcial e pretende processá-los por metade da fortuna a que tem direito”. Só que o mundo real não funciona assim e a tentativa dela de lutar por si mesma acrescenta mais uma camada de tragédia, quando Galina Zackarova joga em cima dela em um sussurro no ouvido e um sorriso irônico no rosto a realidade nua e crua: ela poderia destruir a vida de Ani em um estalar de dedos e não há “justiça” ou lei que a proteja de seu poder. O único poder que realmente importa: o capital!

To me, Anora is a film about a romance with mythology. It’s a story about stories, about the vast cultural narratives that enchant and delude and control us, and about how love, especially heterossexual love, can be propelled by an attachment to an imagined “good life” even more than it’s attachment to any specific person. Anora is a story about a girl so in love with an idea that she loosens her grip on material reality, until reality re-imposes itself with force. It’s like most love stories, this way11. Rayne Fisher-Quann em Anora’s American Dream
Evidentemente representar um grupo tão vasto e diverso como o das trabalhadoras sexuais com precisão é uma tarefa impossível, mas o filme consegue, na minha visão, refletir sobre as complexidades do capitalismo, do sistema de gênero, da luta por dignidade em um mundo que marginaliza quem não se encaixa em seus padrões, ao mesmo tempo em que também nos confronta com as ambivalências das relações humanas. Como alegoria, a jornada tragicômica de Ani, nos lembra que, assim como em toda relação de cuidado, vida e trabalho se fundem entre intimidade e transação. Amor, paixão, desejo e cuidado se entrelaçam na vida material das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, para, em última instância, seguirem sendo socialmente desvalorizadas, invisibilizadas, estigmatizadas e instrumentalizadas a serviço do neoliberalismo, hoje em sua versão cada vez mais fascista.
There is a cruelty in this kind of symbolic representation: sex workers are a group so constantly projected upon, so often understood as ideas and images rather than as people, so frequently turned into moralized objects rather than complex subjects with individual stories. Rayne Fisher-Quann
precisamos falar sobre a mãe de Ivan e como as mulheres também são cúmplices e engrenagem nas rodas que seguem moendo gente.
Escrevi bastante já sobre como mulheres também são instrumentais na manutenção de violências de gênero, raça e classe, e especificamente nesta edição, falo sobre como
qualquer sistema sexo-gênero está sempre intimamente ligado a fatores políticos e econômicos de cada sociedade e, portanto, sistematicamente ligados à desigualdade social e às práticas pessoais e da micropolítica da vida cotidiana das mulheres.
(…)
a cumplicidade e conivência de tantas mulheres no caso de assédio do qual fomos vitimas, transformando uma denúncia solida, por exemplo, foi tratada por muitas como uma questão “pessoal”, e um “assassinato de reputação” e “vingança pessoal”.
Não apenas Galina Zackarov é a mais indignada pelo filho “ter se casado com uma p*&@”, como se encarrega pessoalmente por resolver o “problema”, fazendo questão de humilhar Ani, deixando o mais claro possível que ela não é uma igual. Ela não é uma mulher como ela. Aos olhos de Galina, Ani sequer é um ser humano.
Distinguir-se da puta, da vadia, da mulher de vida fácil ou mesmo daquela que é fácil mesmo sem cobrar, hierarquizando vidas e formas de existir, é mais uma ferramenta do sistema para manter as coisas como estão: injustas e desiguais.
É, também, uma forma de se sentirem diferenciadas, especiais, imunes às violências que acometem as demais. E não há no mundo engano maior do que esse visto que o maior perigo que uma mulher enfrenta é o de — OLHA SÓ — ficar em casa.
Os números sempre corroboraram isso, mas saiu essa semana a 5ª edição (2025) relatório do Fórum de Segurança Pública Brasileiro sobre violência de gênero — Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil.
Uma outra cena que me deixou bem mexida é essa aqui.
São muitas as camadas que poderíamos explorar deste trecho, mas achei muito simbólico quando, após passar horas e um voo inteiro xingando o filho, reclamando de sua irresponsabilidade, jogando na cara como eles “começaram do nada”, enquanto Vanya teve sempre tudo de mão beijada, Galina praticamente surta e o Nikolai (pai de Ivan e outra figura sobre a qual cabem muitas possíveis análises) cai na gargalhada, quando Igor sugere que o jovem mimado futuro ex de Ani, lhe devia um pedido de desculpas.




Nada mais representativo da elite do que esta pretensa preocupação com a educação moral de seus herdeiros, o desejo de passar-lhe a capacidade de “ralar duro” (na empresa do papai e da mamãe, claro!) e, ao mesmo tempo, blindá-los das consequências de suas ações e agirem para “limpar a barra” deles (o famoso passar pano…) transformando as novas gerações que — infelizmente — irão ocupar o poder em indivíduos absolutamente incapazes de assumir qualquer responsabilidade pelo que fazem.
Não que as gerações anteriores fossem muito melhores, mas vejo claramente essa mesma sanha de poupar as crianças e jovens de autonomia, independência e, claro, responsabilidade, refletida também na classe média e alta ao meu redor e é bastante deprimente.
quando comecei a refletir sobre essas questões (porque sim, eu também já tive esse mesmo tipo de preconceito e medo de ser vista como uma mulher fácil, dada e, consequentemente indigna de valor), me lembrei de uma história da minha infância que sempre me marcou e que somente uns 15 anos atrás consegui conectar a essa discussão.
Crescer em Roma, nos anos 90 com um pai músico (que consequentemente “ganhava a vida” tocando música brasileira nos bares, baladas, festivais, restaurantes e etc.) significava conviver com bastante frequência com as chamadas “mulatas”12.
Ela era alta e imponente (ainda mais para uma criança de 9-10 anos), não linda do jeito “padrão”, mas exalava o que ainda não sabia nomear e hoje sei: sensualidade. Seu corpo emanava sexo e suor e quando ela dançava, sem nem mesmo saber porque eu sentia um calafrio.
Pantera (nunca soube seu nome de registro) era uma das dançarinas que volta e meia trabalhavam com meu pai na noite. Certamente eles já tinham transado e isso me gerava ciúmes por minha mãe, mas eu gostava dela no meu intimo.
Em uma viagem tipo “turnê”, na qual os acompanhei, eu fiquei no quarto com ela e mais duas meninas. O cheiro de perfume e laquê ainda se faz presente quando lembro dessa viagem. As risadas maliciosas, as piadas que eu não entendia direito e o cuidado comigo, me maquiando, me deixando “brincar de mulher” ficaram como boas lembranças, mesmo com o choque e assombro com que descobri na época que ela tinha vários “amantes” (todos casados) que alguns deles lhes davam presentes como carros, joias e roupas. Um havia comprado até um apartamento em seu nome. “Que bestas esses italianos”, elas riam.
Foi com elas também que ouvi pela primeira vez sobre o “poder da mulher brasileira”. Eu jamais enxergaria esse “poder” nas outras mulheres ao meu redor. Nunca o enxerguei em mim, mesmo crescida e mesmo sendo tratada como uma “bunda brasileira” (culo brasiliano) com muita frequência na adolescência.
Como é o caso de tantas mulheres imigrantes, o filho da Pantera morava no Rio de Janeiro com a avó. Ela mandava dinheiro todo mês e às vezes ele vinha visitá-la. Uma vez nos conhecemos e passamos a tarde brincando. Não lembro o nome dele, mas lembro que ele era lindo e que me apaixonei por ele — por uma semana talvez. Acho que eu tinha uns 12 anos, porque foi em um verão em que fui todos os dias com meu pai para o Stand do festival Fiesta que rolava em Roma com arte e culinária latina.
Ouvindo conversas dos meus pais e amigos, soube que Pantera tinha um marido no Brasil. Pai de seu filho. E que não apenas ela sustentava ele, como apanhava toda vez que ela o visitava no Brasil.
Lembro de pensar: “mas porque ela não larga ele?”. Mas também nunca entendi porque minha mãe sustentava meu pai, ou apanhava dele ou aguentava todas as merdas às quais ele nos submetia.
À primeira vista, minha mãe era o oposto dela. Minha mãe ralava duro fazendo faxina e muitos outros bicos para que não passássemos fome e tivéssemos um teto. Nunca teve medo ou preguiça de trabalhar. Sempre admirei isso nela.
Dona de uma beleza bem mais “tradicional”, olhos verdes, pele cor jambo, descobri muitos anos depois o quanto ela fazia sucesso e quantas “propostas indecentes” ela já havia recebido. De admiradores na escola, no trabalho, chefes milionários, a amigos de adolescência, eles estavam dispostos a dar-lhe conforto, segurança e uma vida estável. Ou apenas “dinheiro por uma noite”.
Em um almoço, já adulta, casada e mãe, perguntei porque ela nunca aceitou nenhuma proposta. Nossa vida poderia ter sido completamente diferente e, possivelmente, muito melhor.
Vi no rosto dela um grande ponto de interrogação e, certo desconforto, ainda que não julgamento, quando eu afirmei que, voltando no tempo certamente consideraria fortemente ser garota de programa.
Mais choque e horror ainda, eu vejo quando falo isso para algumas amigas. Com mais ou menos julgamento, oscilando entre o espanto e uma risadinha — achando que OBVIAMENTE eu estou brincando (não estou!).
É muito mais fácil, para todo mundo aparentemente, aceitar e até romantizar, o sufoco gigante que passei para bancar minha faculdade e “chegar onde cheguei”.
Múltiplos empregos, noites sem dormir, dias em que minha única refeição era uma coxinha na faculdade, paga pela generosidade de alguma amiga, e em que eu tinha que escolher entre andar quilômetros a pé ou comer mais. Tudo isso é aceitável, compreensível, louvável e até admirado. Isso sim é romantização: do perrengue. Principalmente por quem nunca perdeu uma noite de sono pensando em como iria pagar as contas no dia seguinte.
Você tem que ser um idiota, ou pelo menos desonesto, para achar uma opressão insuportável e outra cheia de poesia. Virginie Despentes
Ainda queria falar sobre o Igor, a relação dele com Ani, e tantas outras coisas, mas fecho com dois prints de
em posts que precisam ser lidos (como tudo dela!) porque estou com medo de ser ameaçada de morte pelo tamanho deste texto.Como disse no preâmbulo, deixo abaixo vários links para quem quer ler bons argumentos (de quem amou, de quem odiou, de quem gostou em partes, de quem apenas fez uma leitura desemocionada - já que “neutro” é sabão em pó.)
da gringa:
Hollywood Loves Sex Worker Culture — But Not Sex Workers - como Anora aborda o trabalho sexual e o estigma cultural em Hollywood, destacando a necessidade de uma representação mais autêntica e respeitosa das profissionais do sexo na mídia. Interessante, pois tem um comentário da Luna Sofia Miranda, melhor amiga de Ani na trama (Lulu) e trabalhadora sexual que foi uma das consultoras do filme. Achei uma crítica bem elaborada, especialmente sobre a mídia em geral, em vez de promover uma discussão moralista sobre o trabalho sexual, poderia encarar uma abordagem mais realista e menos estereotipada. Em especial, critica o estigma cultural em Hollywood de maneira bastante ponderada, na minha visão.
And the Winner Is... - Empress Mirage, trabalhadora sexual ela mesma, além de escritora e muitas ouras coisas, analisa a recepção do filme, reconhecendo que o filme aborda o trabalho sexual de forma mais humana, mas critica sua falha em representar as interseccionalidades e desigualdades vividas por trabalhadoras sexuais negras e pertencentes a outras minorias. Ao centrar uma protagonista branca (uma atriz não trabalhadora do sexo que ela chama de civilian). Achei bem interessantes a abordagem histórica de atrizes ganhadoras do Oscar que interpretaram trabalhadoras do sexo e sobre como, na visão dela, apesar dos méritos técnicos, o filme não desconstrói suficientemente os estigmas e estereótipos, e sua premiação reflete mais a valorização da perspectiva branca e heteronormativa de Hollywood do que um esforço genuíno para amplificar vozes marginalizadas e desafiar estruturas de poder opressoras, perpetuando a exploração de Hollywood e a invisibilidade das trabalhadoras sexuais, especialmente as negras. Ela faz críticas bastante duras à cena final e tem um tom debochado e ácido que realmente me prendeu. Vale a leitura.
Romance Labor: on Sean Baker’s Anora - Marla Cruz é uma trabalhadora sexual e escritora que nos brinda com um texto incrível sobre como o capitalismo influencia e transforma a dinâmica dos relacionamentos modernos. Ela explora a interseção entre trabalho e relações afetivas, refletindo sobre como o trabalho, especialmente em contextos de precariedade e exploração, molda não apenas a vida profissional, mas também a pessoal, afetando a maneira como as pessoas se conectam e se amam, e como a busca por sobrevivência econômica pode impactar a capacidade de construir relações genuínas e saudáveis. A análise sugere que, em um sistema que prioriza a produtividade, o amor e o cuidado são frequentemente relegados a segundo plano, criando tensões e desafios para manter vínculos emocionais autênticos. Ao abordar temas como a romantização do trabalho, a dificuldade de separar vida pessoal e profissional, é uma excelente contribuição para quem, como eu, se interessa em pesquisar o campo do Cuidado.
Mais ainda do que seu texto analisando a obra de Baker e as problemáticas de seu discurso de apoio às trabalhadoras, eu AMEI este texto sobre trabalho sexual da
, uma sex worker do midwest com uma escrita ácida e ao mesmo tempo poética ao narrar sua realidade material com uma excelente crítica teórica embutida nela de forma muito interessante de ser entendida (afinal de contas ela é cientista social, doutora no tema e professora!). Simplesmente incrível (spoiler: eu estou apaixonada e simplesmente já quero ler todos os livros dela, então deixo aqui também o site dela! Aliás vocês podem culpar ela pela demora neste texto sair, pois passei boa parte do meu tempo lendo tudo que ela escreveu no Substack dela sobre tudo) Foi através dela que me deparei com a acusação (bastante evidente e substanciada) de plágio e apropriação da obra de uma trabalhadora por Baker. Triste, mas infelizmente nada surpreendente.Anora's American Dream - particularmente gostei muito desta análise da
. Ela traz uma crítica ao "sonho americano", explorando como o filme retrata a exploração e as desigualdades sociais por meio da história de uma trabalhadora sexual, questionando ideais de ascensão e sucesso. Certamente um dos que eu mais apreciei. Recomendo muito a leitura e também checar as referências que ela traz. analisa, como por exemplo, a análise sobre a relação de Baker com os contos de fadas: Why Anora is the Disney Princess We Need. Infelizmente, ao final, ela cita a pésima Dworkin, mas enfim, nobody is perfect anyway.Under the Table - bem mais crítico, na mesma proporção que interessante, a análise de Sam Bodrojan merece a leitura também (um pouco mais difícil e densa, especialmente para quem não for fluente em inglês e em cinema também).
em terras brazucas:
meu texto favorito segue sendo esta análise da
em que ela mais dialoga com a repercussão à vitória de Anora e os discursos em torno dela, especialmente no contexto brasileiro e nossa guinada assustadora ao conservadorismo em uma parcela relevante de pessoas autoproclamadas progressistas e, até mesmo de esquerda. Um texto fácil de ler e que resume bem meus sentimentos iniciais à repercussão (antes mesmo de ter assistido) e, principalmente, atualizado nas principais discussões brasileiras sobre prostituição dentro de uma parcela considerável de novas meninas e mulheres que se identificam como feministas (is radfem the new libfem?).para a leiga que sou (em análises cinematográficas), gostei bastante de ler este texto da
, em que ela analise, mais do ponto de vista artístico subjetivo mesmo, ao mesmo tempo Anora, Ainda estou aqui e A Substância.gostei desse texto da
, especialmente deste parágrafo. Vale a reflexão sobre empatia e alteridade!a
fez um texto interessante, com o qual tenho algumas sutis discordâncias, mas também recomendo a leitura.old but gold:
quem seguir para pensar os temas abordados aqui (trabalho sexual, pornografia, sexualidade no geral, com boa perspectiva de gênero, raça, classe, regionalidade, dentre outras) de forma crítica:
Lourdes Barreto; Bruna Santiago; Monique Prada; Amara Moira; Svetlanna; Carol Parreiras; Carol Bonomi - @carolbonomi_; Lorena Caminhas; Marília Moschkovich13
Dica de Livros para aprofundar (mesmo!) e se deliciar na leitura (quase sempre!) sobre sexualidade, gênero, prostituição, pornografia…
Putafeminista, da Monique Prada
Teoria King Kong, da Virginie Despentes
Dando uma de puta: a luta de classe das profissionais do sexo, da Melissa Gira Grant
Revolting Prostitutes: The Fight for Sex Workers' Rights, da Molly Smith e Juno Mac.
Filha, mãe, avó e puta, da Gabriela Leite
Puta autobiografia, da Lourdes Barreto
E seu eu fosse puta, da Amara Moira
E vocês? Tem outras indicações que acha legal compartilhar? Fica a vontade para comentar indicando. Quanto mais lermos, quanto mais conhecermos, mais entendemos e saímos do senso comum.
Bom, é isso galerinha… temas para falar não faltam, mas retomando aos pouquinhos que é o que tem para hoje!
Semana que vem eu volto inclusive para contar como foi o meu ensaio de amanhã, para o qual estou me sentindo assim
Um beijo e um xêro,
Com amor, Tay ❤️
a lista das mulheres dos dois cards que abrem e fecham esta News extra vai no chat de inscritos
e aí você pode me contar quantas acertou e quantas não conhecia.
sobre isso, a
escreveu hoje (17/03) esse stack aqui resumindo muito do que eu estava pensando e que li agora há pouco, enquanto revisava uma parte desse meu livro.vide Claudia Raia chamando a atriz de “uma menina de 25 anos que faz uma prostituta” para desmerecer o trabalho da colega), ainda tem uma incoerência clássica de Fla-Flu que não me pegou mesmo! Melhor análise sobre isso para mim foi essa aqui, mas gostei bastante dessa aqui também, na Bravo! porque coloca em palavras técnicas o que senti (e sinto em geral, pois costumo não gostar de atuações mais “exageradas” e super dramáticas e me emociono muito mais com essa sutileza da Mikey (e que pessoalmente senti na própria Eunice da nossa Nanda).
muitas teóricas feministas, por exemplo, analisam, desde os anos 60/70 as representações das mulheres no audiovisual que valem a pena para pensar, não apenas cinema, mas cultura e arte como um todo. A título exemplificativo, Teresa de Lauretis e bell hooks, duas teóricas feministas fundamentais, criticaram há décadas, a representação de gênero e raça no cinema, destacando como o aparato cinematográfico atua como uma "tecnologia de gênero" (conceito chave que Lauretis nos fornece para trabalhar gênero dali em diante) que molda identidades e hierarquias sociais. Lauretis argumenta que o gênero não é uma propriedade natural, mas uma construção sociocultural, produzida por sistemas de representação como o cinema, que reforçam papéis binários e estereotipados. Ela denuncia a objetificação das mulheres no olhar masculino e defende a necessidade de um cinema que ofereça novas subjetividades e identificações para as espectadoras. Por sua vez, bell hooks criticou a exclusão e a representação distorcida das mulheres negras na mídia, destacando como estereótipos como a "mulher negra sexualmente perdida" ou a "mãe sofredora" reforçam a supremacia branca e a marginalização. Ambas enfatizam que as representações midiáticas não apenas refletem, mas também perpetuam desigualdades de gênero e raça, influenciando a autoestima e o acesso ao poder de grupos marginalizados. Estes são apenas dois exemplos de obras que evidenciam a urgência de desconstruir visões estereotipadas e promover representações mais diversas e empoderadoras no cinema e na mídia. Para que quiser algo mais acessível e menos acadêmico, recomendo fortemente esta playlist de vídeos (aulas!) do Leitura obrigaHistória falando de muitas questões importantes, na perspectiva da História, além do sempre necessário Larvas Incendiadas.
Para mim, arte tem a ver com a delícia da beleza, desconforto e a contradição do SENTIR. É sobre me emocionar, rir, chorar, dançar, ficar arrepiada e tudo que — em geral — o mental não é capaz de acessar (apesar de que sim, eu sou capaz de ter mini orgasmos ao ler certas coisas acadêmicas, mas é raro!). Mais que isso: arte não precisa entregar coesão e coerência necessariamente, muito menos didatismo ou ter uma “moral da história” (preguiça inclusive de todo livro infantil ser sobre isso e não poder ser apenas boa literatura para crianças!). A arte bagunça mesmo.
Eu nunca vou me deixar levar por filmes que são tratados, feministas ou não. Conte-me uma boa história cujo final eu não consiga prever. Faça-me chorar. Faça-me sorrir de prazer. Me excite. Me dê uma imagem deliciosa. Deixe-me sair do cinema refletindo sobre o que acabei de ver. Parta meu coração. Só não me dê uma palestra.
(…)
Em geral, porém, como minha antiga ídola Pauline Kael, não gosto de filmes que miram na minha mente (fui acadêmica a maior parte da minha vida, já tive o suficiente disso, obrigada) tanto quanto aqueles que despertam e agitam emoções além da fúria (eu assisto às notícias para isso).
nem parece a mesma pessoa que entrevistou Amara Moira, em 2017 em um papo super didático e esclarecedor. uma pena! A revolução precisa ser sexual é uma entrevista em que Amara é, como sempre, muito gentil e, principalmente, didática.
aversão a um grupo social, nesse caso trabalhadoras do sexo. Assim como outras fobias, é também um preconceito baseado em uma situação ou condição social de um grupo politicamente minoritário. (peguei essa definição didática do texto da
que li aos 45’ do segundo tempo, antes de soltar esse.sobre isso aliás, ninguém explica melhor do que este texto da Monique para o Portal Catarinas. Destaco esse trecho:
Aconteceu na Copa do Mundo de 2014: as mulheres catarinenses, ofendidas com a publicidade do Bokarra, protestavam nas redes: “os turistas chegarão aqui pensando que Florianópolis é um bordel imenso e nos tratarão como prostitutas”. Mas o que seria isso de “sermos tratadas como prostitutas”? Por que é que não nos aterrorizamos também com a ideia bastante possível por analogia de sermos tratadas todas como cozinheiras, por conta de publicidade de restaurante, ou todas como médicas por conta de publicidade de plano de saúde? Parece um questionamento de resposta óbvia, mas precisamos verbalizar.
Chamamos de neurossexismo o neuromito de que existem diferenças cerebrais inatas entre pessoas de diferentes sexos biológicos, bem como os posicionamentos e teorias que usam as pesquisas neurocientíficas para reforçar ideias predeterminadas sobre essas supostas diferenças. Também os resultados de estudos de má qualidade, metodologias ruins, premissas não comprovadas e conclusões prematuras, além da vastamente estudada contaminação nas neurociências (e nas ciências no geral) das vivências e experiências do pesquisador. Como diz a neurocientista Gina Rippon em The Bodly Head: Um mundo de gênero produzirá um cérebro de gênero.
Para mim, Anora é um filme sobre um romance com a mitologia. É uma história sobre histórias, sobre as vastas narrativas culturais que nos encantam, iludem e controlam, e sobre como o amor, especialmente o amor heterossexual, pode ser impulsionado por um apego a uma vida “boa” imaginada, mais do que por um apego a qualquer pessoa específica. Anora é a história de uma garota tão apaixonada por uma ideia que ela perde o contato com a realidade material, até que a realidade se impõe com força. É assim, como a maioria das histórias de amor
aqui me refiro não ao termo genérico e racista para designar pessoas que nascem de relações interraciais ou a negras de pele clara e sim, à profissão de dançarinas, em geral passistas, que simulavam espetáculos carnavalescos para entreter gringos. muito famosas nessa época eram as “mulatas do Sargentelli”. Mulheres negras, com cabelos compridos, alisados, encaracolados ou trançados (naturais ou artificiais), que constróem um estereótipo muito próximo das mulatas denominadas “tipo exportação” por Osvaldo Sargentelli, no seu famoso show “Ôba, Ôba”. As críticas a esta terminologia, à própria existência desta profissão e a como essas mulheres foram incorporadas ao imaginário coletivo e à construção cultural em torno das mulheres negras, do Carnaval e da “mulher brasileira”, nacional e internacionalmente.
não pretendo esgotar aqui as indicações, assim como não pretendia esgotar análises. há perspectivas significativas, importantes e urgentes que não abordei como, por exemplo, a transfobia embutida no lobby de criminalização do trabalho sexual, ao mesmo tempo em que outras oportunidades de trabalho são sistematicamente negadas a esta população. Basta olhar os números.
ooi Tay, sei que faz tempo que você escreveu esse texto, mas juro que qdo li eu perdi o ponto do ônibus hahahaha. gostei muito da sua reflexão de anora, bem profunda (e do começo, dei várias risadas). eu quase me senti meio mal por gostar de Anora por causa das pragas das radfems, daí seu texto me lembrou que eu tinha sim motivos para gostar hahaha.
muito obrigada por me ler e me citar tbm.
queria te perguntar: esse sintoma de histeria de cantar o tempo todo está no livro que você cita?
um beijo!