#21 Com amor, Tay ❤️- Não caber, não ceder e as arapucas da conciliação
Surto, Tretas e Biscoitos (Cafeinados)☕🔥🍪
não faço a menor ideia se este texto está compreensível e inteligível, pois as palavras brotaram do coração para o cérebro, não ficaram muito por lá e já vieram para os dedos, na ânsia de colocá-las no mundo antes de chegar em São Paulo e seguir curtindo as férias com meu filhote. não houve revisão de texto (agradeço a paciência com errinhos ortográficos e de diagramação) e não tenho certeza se essa clareza mental que está aqui, está conseguindo ser transmitida aí. depois vocês me contam?
boa leitura!
sugestão: ler ouvindo
A postura ética da não violência tem de estar ligada a um compromisso com a igualdade radical. E, em termos mais específicos, a prática da não violência requer oposição às formas biopolíticas de racismo e às lógicas de guerra que fazem distinção entre as vidas que merecem defesa e as que não a merecem.
Judith Butler em A força da não violência
Na edição passada da news (#20), comentei com vocês sobre meu retorno às atividades relacionadas ao trabalho, a partir de agosto, e sobre como me sinto em relação a essas muitas facetas de mim que disputam espaço emocional — e físico — em um corpo que ainda segue em recuperação de um processo bem pesado e cruel de esgotamento.
a Tayná de sempre é para mim como aquele ex-namorado tóxico com quem você teve o melhor sexo da vida. você sabe que ele não é a pessoa certa e que a longo prazo te fez muito mal, mas só de pensar nele, você fica toda arrepiada, lembrando de tudo que eram capazes de fazer juntos.
E aí que o momento de voltar vai se aproximando e, com ele, aumenta a ansiedade de reencontrar esse antigo amor (eu mesma!), tão delicioso quanto assustador.
Logo antes de sair de férias comentei na terapia sobre como estava me sentindo vulnerável até mesmo ao pensar nessa versão de mim mesma, receosa de me deixar levar por um lado meu que convence qualquer um (eu inclusa!) de uma ideia ou decisão quando enfia algo na cabeça e que só se rende de exaustão ou se for parada na porrada (frequentemente acontecem as duas coisas!).
Na sessão, a psi me ajudou a lembrar que, neste retorno, é bem provável que eu precise me reapropriar de algumas das características que me “faziam eu”, ao mesmo tempo em que integro as que descobri nos últimos oito meses.
Foi assim que, tal qual o Professor Hulk, me vi serena, poderosa e orgulhosa de tudo que juntas, todas as minhas versões ainda podem conquistar. E falhar. E tentar de novo, quantas vezes forem necessárias, agregando novos aprendizados e deixando para trás teimosias desnecessárias e bagagens pesadas demais — e úteis de menos.

Viajei com essa imagem do Hulk na cabeça e amplificando as reflexões sobre essas partes de mim a partir do meu já tradicional balanço anual de aniversário.
Eis que, quando saiu a notícia da taxação absurda pelo laranjão (aka presidente dos istaitis), sobre os produtos brasileiros, em uma clara ameaça à nossa soberania, instituições e à própria democracia12, tive um insight justamente a partir da irritação profunda que me tomou em muitos momentos da viagem e dessa imagem de Hulk que não me saía da cabeça.
Mesmo estando feliz, mesmo curtindo meus amores, mesmo aproveitando a conexão com a natureza e comigo mesma que escapadas como essas nos proporcionam, me dei conta do quanto, nos últimos tempos, me submeti e me cobrei por uma suposta rigidez e incapacidade de conciliar e ceder que, não apenas não condiz com a realidade, como se demonstra apenas uma tentativa de me ter apequenada, subserviente e insegura.
Pior: deixei que usassem meu Hulk em benefício de quem só queria me usar, ao invés de aciona-lo nas horas em que essa força vital (e também destrutiva!) fosse útil a mim mesma, aos meus objetivos e sonhos.
Isso vale para o Brasil e seu povo e vale também para cada uma de nós que já pagou o preço de se posicionar contra a maré mais benéfica daquele momento, suprimindo seus sentimentos mais poderosos para caber em uma versão apequenada de nós mesmas.
A própria ideia de conciliação como sinônimo de diplomacia e inteligência política tem se mostrado uma arapuca em muitos sentidos3, assim como a de que a radicalidade seria algo negativo, confunde-se “meio-termo” com pragmatismo e posicionamento como intolerância ou falta de flexibilidade e criatividade imaginativa para soluções inovadoras. A
em Se quiser mudar o mundo, fala muito didaticamente disso.É preciso normalizar a radicalidade, não o que já é normal; ou seja, transformar a realidade para que aquilo que parece distante ou radical demais hoje possa ser o estado normal das coisas amanhã. Creio ser importante enfatizar isso porque existe uma ideia equivocada sobre o papel dos “radicais” e dos “extremos” na política. Sabrina Fernandes
Bom, mas o que isso tem a ver com qualquer coisa?
É que, enquanto eu lia os posicionamentos oficiais dos mais diretamente atingidos por este tarifaço — o agro brasileiro —, que, apesar de todo o esforço de Lula para mostrar uma boa vontade quase irritante (para quem está esperando reparação há séculos), continuam aliados ao que há de mais podre na política (quando não são eles mesmos o que há de mais podre na política), eu estava na unidade federativa com a maior concentração de latifúndios do nosso país: o Mato Grosso do Sul.
A título de referência, no MS, a agricultura familiar representa 61% dos estabelecimentos agropecuários do Estado, mas ocupa apenas 4% da área produtiva. Isso no estado com a maior concentração de terras particulares do país (92% do território)4.
Passeando pelas belezas naturais desse lugar deslumbrante, sentia uma raiva enorme ao pensar como mais de 250 nascentes de água podem estar em propriedades privadas, para serem exploradas comercialmente em troca de migalhas que chamam de “preservação natural”.
E, enquanto meu queixo caía ao admirar uma anta mergulhando no rio bem na minha frente (como um presente de aniversário de Oxóssi), meu sangue fervia ainda mais ao pensar que, em um país com mais de 300 mil pessoas em situação de rua e tantas outras sem moradia estável — que podem perder seus tetos a qualquer momento —, uma única família pode dispor livremente de milhares e milhares de hectares de terra.









Apenas uma das famílias, proprietária de uma das fazendas que visitamos para conhecer o Rio Sucuri, é dona de quase 100 mil hectares em diferentes estados, além de diversas outras atividades econômicas — e ainda fazem greenwashing com seu “pioneirismo” em preservação ambiental.
Isso mesmo: pecuaristas que desmataram e continuam desmatando, por disporem de menos de 10% de suas terras (diga-se de passagem, explorando-as também comercialmente), se beneficiam de uma lavagem de imagem completamente descabida.
Tudo isso enquanto povos originários seguem aguardando a justa demarcação de suas terras e vivem em acampamentos de lona, com famílias indígenas inteiras na estreita faixa entre o acostamento de rodovias e as cercas de fazendas. Isso quando não são mão de obra forçada a trabalhar em condições análogas à escravidão.
E, pior: as pessoas naturalizam e brincam de “como é bom ser fazendeiro” e acham absolutamente normal e aceitável esse nível de desigualdade de distribuição de renda e de terra em um país tão rico e abundante em recursos e belezas como o nosso5.
Historicamente, muitos governos de esquerda acreditaram que, cedendo às elites, poderiam garantir mudanças necessárias ao avanço de políticas públicas para o povo. Mas conciliação com opressores só produz mais servidão disfarçada de 'conquista', e é exatamente o que alimenta a ‘cadela do fascismo’.
O que transforma realidades é a radicalização de uma ética e prática política solidária, cuidadosa e coletiva. O que nos conduzirá a um mundo mais justo (ou no mínimo menos desigual) é o cultivo constante de consciência de classe e fortalecimento dos laços de solidariedade.
E atingir esses objetivos demanda de nós autonomia e agência individuais, além de organização e operacionalização coletivas.
Demanda, também, a capacidade de integrar o Hulk e o Dr. Bruce Banner que existe dentro de nós, de maneira harmoniosa e em prol destes objetivos.
Não porque sejamos moralmente melhores ou superiores, ao contrário disso, porque entendemos que o único caminho para a emancipação dos povos e o fim das desigualdades é o caminho da luta conjunta e coletiva pautada em uma ética cuidadora democrática.
Não temos de amar uns aos outros para nos engajarmos em uma solidariedade significativa. O surgimento de uma capacidade crítica, da crítica em si, está associado à preciosa e contrariada relação de solidariedade, em que nossos “sentimentos” navegam na ambivalência que os constitui. Sempre podemos desmoronar, por isso lutamos para permanecer juntos.
- Judith Butler em a Força da Não Violência.
Rodeada das belezas naturais mais incríveis, do afeto leve e reconfortante dos meus meninos e imersa nas reflexões de ciclos que se encerram e recomeçam, parece que a ficha caiu e eu finalmente entendi: não preciso abrir mão de mim ou de minhas versões para caber em lugares onde não pertenço, aceitando migalhas de afeto em troca de uma suposta transigência.
Além de ineficaz (as pessoas continuam te abandonando quando você deixa de ser útil!), o preço de trair a si mesma é infinitamente mais alto do que o da coerência.
Que sim, me permito — e me exigirei — ser intransigente com meus valores, meu senso urgente de justiça e minha compaixão pelas vulnerabilidades ao meu redor, inclusive as minhas.
E que não se confunda intransigência com ausência de diplomacia ou com violência. Grandes lideranças não violentas foram justamente as mais rígidas em seus posicionamentos político-ideológicos.
A escolha hoje já não é entre violência e não-violência. Ou é não-violência ou não-existência. — Martin Luther King
E é isso. Depois de muito questionar (e sim, navegar as águas profundas da coitadolândia) o preço pago por não ceder a ameaças e perseguições que violavam meus valores, decidi que nunca mais me culparei por resistir ao canto da sereia de quem tenta comprar integridade com chantagem e força bruta.
Perdi cargo, crachá, prestígio, "amizades", contatos, visibilidade, salário, saúde (física e mental) e, por um tempo, até a fé e a esperança. Mas, às vésperas dos meus 41 anos, me permiti acolher tudo o que sou — e o que me faz ser eu —, honrando o que há de mais sagrado para mim: minha capacidade de sonhar e de agir de acordo com o que acredito.
Sigo aprendendo, assim, a equilibrar a vibração da esperança com a serenidade diante dos meus limites, em todas as minhas versões.
Sou, ao mesmo tempo, a Tayná cheia de energia e habilidade de fazer e a que aprendeu a descansar (e a rebolar!).
Tenho muitas versões e facetas e nenhuma delas está à venda!
Diquinhas Com amor, Tay ❤
uma edição imperdível para refleti sobre o verdadeiro e mais profundo significado de soberania no
dei um tempo na minha maratona da Annie Ernaux e engatei agora nas férias — finalmente! — o Amora, da
e eu estou apenas arrebatada por essa obra! não consigo encontrar outra palavra não! Contos belíssimos e todos com uma doçura áspera das narrativas que fogem do lugar a que estamos tão habituadas na literatura (masculina, hetero, cis, branca etc.), mesmo que não seja o nosso lugar no mundo material. vale cada minuto!
por hoje é só, mais uma vez sem memes e dessa vez sem revisão de texto também (conto com a paciência de vocês), pois prestes a embarcar em Campo Grande de volta a San Pabla onde começamos, Cacá e eu, a segunda de três partes das nossas férias!
Com amor, Tay ❤️
Ahhhh e se você chegou agora, confere aqui a última edição dessa cartinha que sai toda semana (ou quase) com o compilado do meu mundinho.
enfim, mais uma atitude delirante e autoritária daquelas que só uma grande potência em declínio é capaz de fazer à luz do dia e televisionada (sim, porque interferência na soberania alheia é só o que eles sempre fizeram, apenas eram mais polidos para fingirem que se importavam com protocolos…)
a cereja do bolo de um período de intensa disputa nas redes — sobre temas de grande importância para o povo brasileiro (IOF, taxação de grandes fortunas, justiça tributária, escala 6x1…) — e que diz tanto sobre conciliação, intransigência, coerência e integração, não apenas no campo da política e do coletivo, mas sobre nossas escolhas e processos de reflexão mais íntimos.
já explicados muito bem por gente muito mais gabaritada do que eu. Então, não vou me alongar muito sobre isso aqui, mas recomendo demais tudo que a Sabrina Fernandes já escreveu sobre o tema como ponto de partida, em especial o livro Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa
De olho nos ruralistas: Com 92% do território privado, MS tem maior concentração de terras particulares do país
Indígenas do Mato Grosso do Sul são os mais explorados por trabalho escravo.
A política para indígenas adotada pelo estado brasileiro na primeira metade do século 20 teve uma particularidade no Mato Grosso do Sul. As autoridades concentraram grandes contingentes de diferentes etnias em algumas poucas áreas selecionadas sem conexões com as tradições culturais dos alojados.
Demarcadas, essas áreas são hoje consideradas pequenas, excessivamente povoadas e repletas de problemas sociais. Não por acaso, são popularmente conhecidas como confinamentos.
Os que deixam essas áreas enfrentam desafios para a inserção no mercado de trabalho, entre outras razões, pela baixa escolaridade e racismo. Muitos caem na miséria, não são raros os casos de alcoolismo e há os que, sem perspectivas, perambulam por áreas urbanas de municípios como Dourados.