A impunidade não é um erro. é a regra de um jogo que precisamos mudar
Surto, Tretas e Biscoitos (Cafeínados)☕🔥🍪
Segundo os magistrados, a decisão anulada não teria levado em consideração a "falta de confiabilidade" da vítima e o contraste com outras provas.
Não vou entrar aqui em pormenores jurídicos visto que não vi os autos e muito menos entendo de direito criminal o suficiente para me debruçar sobre a lei de um outro país neste tema, mas esta decisão, como muitas outras certamente é útil para provar o que já sabemos há muito tempo:
não há vantagem alguma em denunciar homens — especialmente os ricos, poderosos e brancos. A palavra, coerência e evidências da vítima nunca serão suficientes.
nem mesmo a performance da “vítima ideal”, a que não merecia, que não quer dinheiro ou exposição, que chora no tribunal, virgem, ou o que for, não será suficiente para te proteger.

Mas não estou aqui para fazer eco ao que muitas feministas e mulheres indignadas já estão pontuando, com razão. Ao contrário, eu abolicionista penal que sou, estou pouco me lixando para se o Daniel Alves será preso ou não. Afinal de contas sei muito bem que o sistema penal tem um propósito muito claro e está sendo muito bem cumprido. Daniel, Robinho ou quem for, atrás das grades não irá mudar isso.
O judiciário como um todo, mas o sistema penal principalmente, quando muito, serve aos interesses de quem quer um simulacro de justiça que vem às custas da população mais pobre, da juventude negra e dos marginalizados sociais. Isso na melhor das hipóteses. Na mais realista, ele serve para criar falsos problemas que beneficiem financeira e politicamente quem já está atolado até o nariz no privilégio. É o caso da decadente guerra às drogas, por exemplo.
Estou entre as que não acredita — e critica — leis com penas mais duras para crimes sexuais ou disso e da aquilo que, à esquerda ou à direita, são apenas populismo barato pautado em negacionismo puro.
Minha indignação e reflexão é outra. É social e política, mas também individual, porque o que eu mais li nessas poucas horas desde que vi a notícia é que “o sistema foi feito por homens, para homens e é por isso que precisamos de mais mulheres no tribunal”.
Será?
De novo: que homens? que mulheres? que sistema?
Não são apenas homens que se aliam a abusadores. Acreditem, há incontáveis mulheres cúmplices e omissas diante das violências ao seu redor. Muitas vezes as mesmas que estão postando sua indignação hoje contra o judiciário espanhol, ontem protegiam os seus de alguma “acusação injusta”. Por mais evidências que houvesse, por maior que fosse o número de vítimas.
Eu não estou dizendo e jamais direi que “todo homem é um potencial abusador”. Não acredito, ao contrário, rejeito, argumentos essencializadores de uma perversidade inata (seja social ou genética) masculina, tanto quanto não acredito na “pureza feminina” ou que todas as mulheres, no final do dia, estejam sujeitas a passarem por abusos.
A interseccionalidade, enquanto ferramenta de análise sociológica e política vem nos socorrer justamente desta complexidade.
Somos sujeitos, somos agentes, somos inseridas/os em sistemas que nos formam, nos moldam, às vezes até nos aprisionam, mas nós temos invariavalmente um papel nele. Maior ou menor, mais ou menos protagonista, figurante, que seja. Temos um papel e, em alguma medida e em algum momento, fazemos escolhas.
Já falei em muitas ocasiões, por aqui mesmo e na rede ao lado sobre como operam assediadores para fiar-se (aí sim!) em um sistema que os beneficia.
Em todos os casos, o silêncio causado pelo medo que eles alimentam, seja o silêncio de quem tem medo de denunciar, seja o de quem tem medo de prestar apoio público às vítimas por medo de retaliação, só beneficia a perpetuação deste tipo de violência.
Também já falei, mais de uma vez, mas aqui está um bom exemplo mais recente, sobre o papel das mulheres que protegem esses homens e porquê.
E aí que hoje, em uma semana bem esquisita para mim, saindo da terapia, ao pegar o celular no Uber me deparo com as notícias e posts de indignação e, na outra rede (a profissional) um post do meu assediador recebendo elogios e confetes pelo seu recomeço de uma brilhante trajetória. De homens e mulheres.
Claro que tem as que não elogiam publicamente, mas abrem portas, julgam as vítimas às escondidas (porque jamais teriam coragem de lhe falar na cara o que dizem pelos cantos!). Não menos importante, tem as que silenciam para não perder espaço e influência. As que te deram tapinha nas costas indignadas com “o absurdo” que você estava vivendo. Que demonstra toda a indiganação no palco com microfone na mão, mas não moveu uma palha, mesmo tendo poder para, influenciar a situação.
E quando digo não moveu uma palha eu estou sendo literal. Porque eu sei que existem pessoas que agiram como aliadas, influenciando, jogando um jogo de xadrez complexo, inclusive por conta de amarras institucionais, contratos de trabalho, etc.
Se tem uma coisa que eu ganhei com essa história toda foi ter muito mais clareza hoje de quem é quem no rolê. Quem eu admiro ainda mais, de quem não quero nem chegar perto e de quem serei companhia eventual proforma. Tenho muito pouca mágoa hoje, embora bastante decepção.
Eu sei bem (hoje com muita clareza) quem foi aliado e aliada das vítimas, quem preferiu fazer a pêssega, quem se distanciou por medo de ser vista como persona non grata tal qual eu me tornei. E sei também que a maioria, a grande maioria mesmo, das mulheres ao meu redor calou-se diante da violência.
Esta é a realidade fática. Eu poderia seguir especulando motivos. Calou-se por conveniência, por medo, por ignorância.
Não estou aqui querendo julgar motivos, posição social e institucional. Estou falando apenas de fatos e o fato é: a maioria das mulheres (dos homens honestamente eu não esperava muita coisa e até tive uma ou outra surpresa) calou-se e está colhendo os frutos disso, tanto quanto eu estou colhendo os meus por não ter me calado.
E que “frutos” são esses?
Volto, mais uma vez aos fatos: os assediadores “recomeçaram” suas vidas e seguem nas mesmas rodas fazendo cara de injustiçados, as pessoas que se expuseram menos ou nada seguiram suas vidas, os aplausos e coraçõezinhos seguem nos posts e eventos institucionais e a máquina de moer gente capitalista segue girando.
E este é o padrão, não o desvio.
Assistindo Dopesick (não pretendo dar muito spoiler, mas se tratando de um caso real e muito conhecido, enfim, siga por sua conta e risco), fiquei obcecada pelo tema da crise dos opióides e passei alguns começos de madrugada pesquisando sobre.
O enredo da série, obviamente, é bastante romantizado, mas é baseado no livro de não ficção Dopesick: Dealers, Doctors and the Drug Company that Addicted America, de Beth Macy.
Em poucas palavras, Dopesick aborda como a farmacêutica Purdue Pharma promoveu abusivamente o OxyContin, um analgésico altamente viciante, considerado responsável por uma das fases mais críticas e um marco na crise de opioides que causou meio milhão de mortes por overdose nos Estados Unidos desde 1999. Em 2024, os executivos da Purdue se confessaram culpados de acusações criminais que incluíam fraudar agências federais de saúde, minimizando a natureza viciante da medicação e pagando propinas aos médicos.
Fique horas lendo sobre o processo judicial de falência (Chapter 11 ou o que seria o equivalente ao nosso instituto da Recuperação Judicial) que foi anulado pela Suprema Corte ano passado, para excluir a parte que impossibilitava de julgar os Sackler (donos da p0rr@ toda! e a família “mais filantropa” dos EUA), mas agora apresentaram um novo plano aos credores e acrescentaram mais um bilhãozinho na mesa.
Pois bem, deixo aqui só alguns poucos links para vocês começarem a escavar o tema - se quiserem, claro - porque meu ponto aqui é especificamente o desfecho.
Suprema Corte dos EUA rejeita plano de falência de farmacêutica protagonista da epidemia de opioides
Falido nos EUA, laboratório da crise de opioides faz fortuna no mundo
Contando a história da crise dos opioides: uma análise narrativa da série de TV Dopesick
Sackler Family Net Worth 2024: How Much Money Do They Make?
E o desfecho, meu povo, é que: a casa sempre ganha!
E, para desgosto de muitas de nós, ela ganha até quando perde.
É o famoso “cair para cima” né?!
Pode fazer sua pesquisa aí e descobrir por onde anda a família Sackler.
E é por isso mesmo que as vítimas tem medo de denunciar e as pessoas se conformam que não podem fazer muito para mudar o status quo. Elas estão certas em achar que o esforço individual delas, ao fim e ao cabo, só irá prejudicar a elas mesmas.
E é por isso, também, que eu não julgo vitimas! Nem as que não denunciam, nem as que não denunciam.
O problema, julgamento ou não, minhas camaradas é que é exatamente nisso que eles confiam e se fortalecem. No medo do estrago ainda maior nas nossas vidas. Medo da revitimização. Medo real e justificável!
No dia 31 de outubro eu tive uma das minhas piores e mais graves crises nesse processo.
Descobri, por fontes seguras, que uma mulher de altíssima influência (no caso denunciado e no empresariado brasileiro) se uniu a outra (ainda mais poderosa) para liderar uma campanha de difamação "de bastidores". Queriam convencer executivos e executivas de que minha denúncia era apenas uma vingança pessoal.
Duas mulheres (apenas as que eu sabia!) se uniram para me destruir! Como aquilo era possível? Como isso estava acontecendo? O que poderia fazer contra tamanho poder, sendo eu apenas uma camponesa?
(quem elas são deixo para a imaginação de vocês porque eu posso ser doida, mas não sirvo pra burra!)
Aquilo me deixou em pânico. Vomitei varias vezes, chorei, tive uma das piores crises de ansiedade da minha vida! E olhem que de crise de pânico e ansiedade eu tenho vivencia…
E a decisão do caso Daniel Alves, tanto quanto o tapa na cara que eu levo toda vez que abro o LinkedIn, mais do que questões jurídicas, morais ou jornalísticas são recados.
“Fique quieta!”
“Não vai adiantar nada!”
“Pense na sua família/carreira/gato/saúde mental ou qualquer outra coisa, mas desiste dessa ideia maluca!”
“Você vai ver que na hora do vamo ve todo mundo vai correr e você vai ficar sozinha.”
Essas são algumas das frases que euzinha ouvi inúmeras vezes.
E no dia 31 de outubro eu mesma me disse essas frases algumas vezes!
Agora imaginem a vítima do Daniel Alves? Vítima de estupro (muito mais grave no imaginário social e em termos de violência física e subjetiva) de um cara com renome mundial, poder financeiro e influência no meio com acesso a amigos com recursos praticamente infinitos, ídolo de tanta gente!!!
Imaginem o que tantas outras vítimas de casos midiáticos não ouviram. E se deram mal quando não ouviram os conselhos dessas pessoas.
Sim, porque até que alguma desse certo, todas deram errado e aí temos casos extremos como P. Diddy, Harvey Weinstein e Bill Cosby que abusaram, violentaram, estupraram e o diabo mais por DÉCADAS e quem falou ou tentou fazer alguma coisa SÓ SE FERROU.
No mundo corporativo não é diferente. Lhes asseguro. Até uma denúncia ir para frente, muitas outras foram descredibilizadas, tiveram vítimas adoecidas, demitidas, esculachadas, e tudo mais que vocês já sabem…
Eu colapsei nesse 31 de outubro de 2024.
Bom, o resto é história, mas o fato (de novo ele…) é que naquele momento, naquele voo voltando para casa entre idas ao banheiro para vomitar e usar o saco do avião para conseguir respirar, eu tomei a decisão de não recuar.
Por mim, por todas as vitimas daquele processo que contavam comigo e por todas as que não puderam e não poderão fazer o mesmo!
E eu fui em frente! Mesmo destruída, mesmo com MUITO medo!
“Você se arrepende?” me perguntou a psicóloga quando contei a história a ela.
“Sim, de não ter agido antes!”
Porque muitas foram bem mais corajosas que eu ao denunciarem antes, sozinhas, confiando plenamente no sistema.
E esse texto todo é primeiramente para agradecer a todas as mulheres corajosas e reconhecer suas dores.
Eu não sei e quando voltarei a trabalhar! Sei que o “mercado” não me receberá tão bem e que a campanha de difamação surtiu algum efeito.
Mas eu também sei que tão logo eu me reerga, assim que eu estiver de pé, seguirei dedicando toda a minha energia para que outras vitimas que queiram denunciar saibam que elas não estão sozinhas.
Que eu estarei aqui para gritar ao lado delas!
Que antes de “dar certo”, muitas deram errado e eu estou aqui para ajudar aquelas que quiserem seguir tentando!
E mais: eu quero seguir podendo acalentar meu filho de 8 anos, que vive tendo crises e pesadelos com “esse mundo horrível e cheio de idiotas”, dando o exemplo de que “cabe a nós fazer do mundo o lugar que queremos que ele seja!”
Quero que ele saiba que não me calei, nem me eximi, não só porque posso, mas porque não quero!
E essa talvez seja a minha grande rebeldia. A recusa de me perder de mim naquilo que eu mais valorizo: minha capacidade de sonhar e agir por um mundo melhor!
Com amor, Tay ❤