a borboleta dançante se transformou em lagarta de novo...
de quantas metamorfoses se faz uma vida?
“Spiegazioni lineari sono quasi sempre bugie”
Elena Ferrante
Parece uma bola de Bubbaloo sabor morango, ou talvez tutti-frutti — sempre acho difícil distinguir um do outro — que vai se enchendo, enchendo, crescendo, até que a película fica cada vez mais fina e transparente, tomando cada centímetro da tela.
É o suspense da possibilidade da bola estourar a qualquer momento que deixa a cena toda mais tensa.
Em volta, escuridão. Absoluta. Poderia descrever como aquelas paredes infinitas dos estúdios de fotografia: tudo preto. Chão, parede, teto. Uma coisa meio Infinito.
Uma agulha flutuante surge — não faço ideia de onde — e o que parecia ser uma bola de chiclete vai se delineando, claramente agora, como uma barriga de grávida.
Redonda.
A pele bem esticada, o umbigo saltando.
E aquela agulha ali. Rondando. Ameaçadora. Como uma abelha: não podemos espantar muito bruscamente, mas também não podemos deixar que ela chegue perto demais.
Tenho esse sonho — que eu sempre senti como um pesadelo — desde que me entendo por gente. Talvez ali pelos três ou quatro anos, seja minha primeira lembrança dele, e continuou até meus quase 20. Vez ou outra, muito raramente, ele ainda aconteceu na minha vida adulta. Acho que sonhei com a bola Babbaloo grávida umas três ou quatro vezes nas últimas duas décadas.
Ela, a bola-barriga, nunca chegou a estourar no meu sonho.
São muitas as metáforas possíveis, e é difícil ter certeza do que se passa em um subconsciente. Mais ainda em um tão danificado e sequelado como o meu.
O que me trouxe até aqui hoje, no entanto, não é a analogia possível, mas o fato de eu ter tido esse sonho-pesadelo novamente no final de semana passado. E é impressionante como, mais até do que os detalhes recorrentes dessas imagens oníricas, foi a sensação — precisamente apavorante e familiar — que veio com elas.
Curiosamente, desde que tive o burnout e parei (ou me pararam... ou fui parada — não sei bem qual tempo verbal usar neste caso) à força para aprender a descansar e, quem sabe, não morrer desenvolver uma relação mais positiva e menos tóxica com o trabalho e, principalmente, repensar/remodelar minha autoidentificação enquanto uma pessoa que TRABALHA e ENTREGA SEMPRE no mais alto nível de performance, eu tenho pensado muito na Tayná menina. A Taynazinha, como eu a chamo.
Mas não espere aquele papo de “abraçar minha menina interior”, ou “ela ter orgulho de até onde eu cheguei” ou “resgatar os sonhos dela”, nem nada dessa bullshetagy1
O que realmente não sai da minha cabeça é o rosto semi-decepcionado dela, me olhando como quem pergunta: “Quantas vezes você acha que ainda vai conseguir recomeçar?” Ou, pior, quando ela está mais nervosa e não estamos em bons termos: “Quantas oportunidades você ainda vai desperdiçar com essa mania de caçar sarna para se coçar?”
Talvez você ache um pouco surreal como essa Taynazinha possa culpabilizar a vítima. Eu também acho! Bem, no geral, essa é a versão aborrecida, já um tanto crescida, lá pelos seus 14 ou 15 anos, que prometeu que seu único objetivo seria ir o mais longe possível do lugar (metafórico e físico) de onde saímos e não parar até nos tornarmos o produto acabado deste potencial imenso que sempre nos disseram que éramos.
Sinto que a decepção dela vem exatamente do fato de que, mais de uma vez, ela cumpriu o que prometeu a si mesma. Ela fez o que se propôs, chegou onde dizia que chegaria. Mas e eu? A Tayná adulta. Aos 30, agora aos 40, pareço estar sistematicamente empurrando-a cada vez mais para longe de seus planos originais. Mais confusa, menos determinada. Mais fútil, menos inspiradora. Não somos mais prodígio. O que sentimos mesmo é que nos tornamos uma grande decepção.
Um grande quase…
Claro que, assim como na frase que abre esse texto, a esta altura do campeonato, boas ferranters que somos, já sabemos que quase toda explicação linear é uma mentira. E toda história tem múltiplas versões, inúmeras formas de ser contada — mesmo de nós para nós mesmas.
Talvez, neste reencontro forçado, em que ela tem vindo me cobrar até em sonho, o momento seja de nos enfrentarmos, não de nos abraçarmos. Sim, talvez eu a esteja decepcionando em muitas frentes. Mas há tanto que ela não sabe sobre nós. Coisas que ela abafou, silenciou. Coisas que ela matou — e que eu, com muito custo, estou precisando viver agora em um luto tardio.
Talvez a gente precise convidar para esta conversa aquela Taynazinha que era uma borboleta dançante. Ela era a mais sábia de nós.
Era?
Sim, houve uma época em que você era uma borboleta dançante entre mesas e engradados de cerveja. “Meio Maísa, exibida — adjetivo, substantivo ou particípio?”, você disse uma vez na terapia. “Papagaiante, bem macaquinha de circo, sabe?!”
Aos 11, entrou no teatro. Aos 13, fez um curso de cinema. No final da sua interpretação como Winona Ryder em uma cena de Minha Mãe é uma Sereia (puta filme, aliás!), todo mundo chorava. Inclusive sua parceira de cena. Aos 16, já de volta ao Brasil, foi convidada para a famosa oficina do Wolf Maya.
Recusamos ali — e para sempre — qualquer continuidade de carreira que não fosse o Direito. “Das 9h às 18h”, você dizia (kkkkkk, cumpadi Washington gargalha na nossa cara neste momento!). Convenceu-se de que, ao contrário de toda a sua família, era “careta”.
2000 e 2001 foram anos anestesiados. Você lembra pouco deles, eu menos ainda. Tentou o suicídio (duas vezes, mas as pessoas só sabem de uma), passou no vestibular, trabalhou pra caramba, tomou seu primeiro porre, engordou e emagreceu 15 quilos em menos de um ano. Começou a se achar feia, sem graça, sem talentos, desinteressante. Parou de se arrumar, viveu de jeans e moletom, e incorporou essa nova persona: “Tayná, inteligente, divertida, sarcástica, ou sem graça, mas inteligente”. No seu imaginário, você era a própria Betty, a Feia. Convenceu-se de que não era criativa, de que era pragmática e — claro — nem um pouco bonita. Parou (paramos!) até de escrever.
Não sei dizer exatamente quando ou como essa chave começou a girar.
Talvez tenha sido o mergulho nos estudos de gênero. Ou a maternidade, com o peso de se ver completamente absorvida por outra existência, como se a minha não tivesse propósito por si mesma. Me resgatar a fórceps da desumanização e perda de identidade que se pretende impor às mulheres cis que se tornam mães, nos obrigou a olhar de frente para a Tayná que, por tanto tempo, você (eu!?) havia matado.
Será que eu estava matando você, ou você estava nos matando?
Nós poderíamos ter sido tantas outras coisas se não rejeitássemos a priori tudo o que considerávamos uma “herança maldita”. Incluindo a facilidade para certas coisas, que nunca impediu que a insatisfação nos acompanhasse a vida inteira como um hálito quente no cangote. Como se “ser inteligente” anulasse automaticamente todo o meu esforço. O seu, melhor dizendo.
Se apenas a sensação de que eu poderia ter sido melhor, ter feito mais, não me perseguisse onde quer que eu vá… poderíamos ter sofrido muito menos se não tivesse iniciado tão cedo esse processo de auto-ódio tão difícil e doloroso de abafar.
Ainda posso… podemos… talvez. Quem sabe.
Ainda leio todos os bilhetinhos que você me deixou. Observo no espelho as pequenas e grandes marcas no corpo, outras na alma. Algumas cicatrizando, outras ainda doídas... todas contando alguma história sobre nós - e que provavelmente não interessaria a mais ninguém.
Adoro olhar para você nas fotos e reparar em todas as manchinhas, pintas, marcas de expressão e rugas que apareceram no meu rosto, graças às suas histórias. Algumas eliminei com procedimentos estéticos e cremes caros, que gosto de comprar pelo cheiro. Outras eu cultivo com carinho porque são troféus de tudo o que superamos juntas, e lembretes que deixo para a nossa Tayná de amanhã.
Crescer dói pequena, e talvez seja por isso que fiquem tantas marcas no rosto e no corpo: elas desaguam as marcas do coração na pele.
Marcas2 que são mapas para nós mesmas e, como diria nosso amado Gabo, se "a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la", eu aprendi foi com uma nova poeta preferida que "dançar é por dentro e até o fim e que a vida, meu amor, é sem intervalos".

Sei que você foi levada a acreditar que, para ser amada, precisava ser a melhor em tudo o que se propusesse a fazer. Que não havia preço alto demais a pagar por isso. Bem, eu estou pagando esse preço e sim, ele é altíssimo!
Alto e pesado. Dispensa, no entanto, explicações lineares — por mais que esta pareça uma.
Especialmente porque, nada disso garantiu sermos amadas. Nem sempre. Quase nunca da forma como imaginava precisar.

Nos últimos 20 anos, aprendemos — muitas vezes na marra — que nada é mais precioso em uma relação do que sermos aceitas por quem realmente somos. Sem depender da validação externa para nos sentirmos bem ou em paz.
O difícil, no entanto, é:
Saber, de fato, quem somos e o que realmente queremos (especialmente quando somos tão boas em nos convencer de que a prioridade do outro é, sim, a nossa própria prioridade); e
Colocar isso em prática.
Tentamos sempre? Sim.
Conseguimos? Não.
Ou melhor: nem sempre.
Ok, quase nunca seria mais honesto…
Eu consegui coisas que você jamais imaginaria que teria coragem.
Um ensaio sensual, com fotos nuas, coloquei silicone e descobri que, dentro (e fora) dessa cabeçuda que sempre fomos, tem um mulherão. Sexy, cheia de apetite pela vida e por tudo que a faça se sentir viva. Talvez tenha sido essa energia que nos salvou até aqui.
E, claro, realizei muitas outras coisas com as quais você sempre sonhou: trabalhar na ONU, conhecer o mundo, escrever um livro, se apaixonar loucamente e casar com o amor da sua vida.
Por enquanto, a verdade nua e crua é que eu nunca realmente senti a alegria ou o contentamento que esperava (ou que me disseram que sentiria!) com as minhas “conquistas”. Essa felicidade que você nos prometeu se “cumpríssemos o roteiro” e que tanto te motivou. Ela não chegou!
Os sonhos e os objetivos estão sempre “logo ali, um pouco mais à frente”. “Quem sabe quando tal coisa acontecer, eu sentirei que está bom.”
Talvez devêssemos chamar nossa versão 50+. Quem sabe ela terá mais respostas...
Será que ela conseguiu preencher o vazio que traz essa sensação de estar sempre devendo algo? Será que ela aprendeu a acreditar que somos valiosas de verdade? A sentir este valor…
Será?
Se viver o sonho não basta para sentir que está suficientemente bom, o que bastará?
A verdade é que eu ainda não tenho resposta completa, minha pequena. Só esse desejo imenso por um contentamento plácido, tão falado, mas que eu “nunca vi nem comi” e com o qual me pego sonhando o tempo inteiro.
Because then I would be enough.
It would finally be true.
And I could stop this, this terrible search.
For what I know ultimately won’t fulfil me.
Jim Carrey3
Será?
Será… há de ser…
Pelo menos, vamos seguir tentando fazer a borboleta voltar…
Com amor, Tay ❤
em português, a boa e velha BABOSEIRA…
Notas para mim mesma: escrever sobre cada uma das minhas frases tatuadas porque acabo de me dar conta de que são todas lembretes para mim mesma e, alguns, também para os outros.
Nunca cansarei de compartilhar o vídeo deste discurso dele. Ao menos não enquanto eu não encontrar uma resposta eu mesma para a pergunta que nos assombra.