#16 Com amor, Tay ❤️- a felicidade é blasé e clichê!
Surto, Tretas e Biscoitos (Cafeínados)☕🔥🍪
eu ia começar pedindo desculpas pelo sumiço e aí me dei conta de que criei esse espaço para desafogar, compartilhar e trocar justamente em uma lógica de não performatividade de uma produtividade tóxica que sempre vivi em picos absurdamente insalubres. desacelerar tem dessas…
então, não vou pedir desculpas, mas quem sabe os porquês desse tempo ausente, ressoem de alguma forma por aí.
depois de uma recaída muito dura em abril e começo de maio, as últimas semanas tem sido feitas de dias estáveis, sem acontecimentos marcantes e, no geral, bons.
não tive inspiração (nem muita vontade) de escrever profundas reflexões. pareceu que a criatividade estava minguando.
e aí que nessas mesmas semanas, Cacá tem reclamado de um “bloqueio criativo” que está deixando ele muito triste. lá pelas tantas, do alto dos seus quase nove anos ele me perguntou “mamãe, será que eu já gastei toda a minha criatividade com os meus outros livros e gibis?”
e ai que veio o clique desta edição, na porta de casa, enquanto beijava meu pequeno ansioso e lhe dizia que com certeza ele ainda criaria coisas incríveis e que a mamãe também tem esses bloqueios e que a noite conversaríamos.
passei o dia pensando na eterna questão: de onde vem a criatividade
é necessário sofrimento ou de algum tipo de dor existencial para fazer arte?
há muitas opiniões sobre o tema, que resolvi revisitar nos meus devaneios junto com meus diários e notas recentes.
esta edição, que finalizo em um chalé nas montanhas no meio da serra em um dia cinza e chuvoso, regado a vinho, comidinhas e o meu amor, surge da DESinquietude e da placidez.
recomendo ler ouvindo Shimbalaiê
quantas vezes a gente, em busca da ventura,
procede tal e qual o avozinho infeliz:
em vão, por toda parte, os óculos procura
tendo-os na ponta do nariz!
Mario Quintana
Boa leitura!
Com amor, Tay ❤
Estou há mais ou menos duas semanas tentando escrevendo uma edição (que seria esta) sobre temas profundos que tenho trabalhado na terapia, relacionados a mecanismos de sobrevivência que desenvolvi no trauma e que hoje, por mais excelentes ferramentas que tenham sido para me permitir chegar até aqui - viva e mais ou menos funcional e “bem-sucedida”
No meu processo de lidar com este combo de adoecimento mental e seus ciclos de recuperação, com altos e baixos intensos, me peguei surpresa em como os momentos em que me sinto melhor são justamente aqueles em que não há coisas “grandiosas” (para o bem e para o mal) acontecendo.
“Será que a felicidade é feita de um conjunto de momentos blasé?”
Tempos atrás Cacá me disse que
a vida é um filme de comédia, com alguns momentos tristes no meio.
e isso me pegou muito porque a minha vida não foi nem um pouco parecida com isso. Se fosse descrever esse filme ele seria um misto de drama, ação, terror e momentos de humor mórbido e os grandes eventos incríveis que precedem o tombo.
Refletir sobre essa platitude e como só agora, quase uma gestação depois do colapso, eu realmente estou começando a entender o que é focar no presente e no curto prazo, a descansar o corpo e a mente, a aceitar(ish) os tombos e recaídas como parte da jornada - e não uma falha pessoal - me fez perceber o quanto eu passei a vida inteira dopada.
Viciada na adrenalina que a sobrevivência e, depois o sucesso, me trouxeram.
Resumidamente, a adrenalina é um hormônio liberado quando estamos amedrontados ou excitados. Ela é responsável por assegurar que sejamos capazes de ter reações rápidas em situações de emergência como fugir ou mesmo atacar.
Útil para minha sobrevivência em um contexto em que o medo era parte do meu dia a dia (e principalmente noite após noite), vivi minha vida toda em estado de alerta. Pronta para quando tudo daria errado. Algumas vezes deu mesmo, muitas outras não, mas mesmo assim o estado de alerta e o pico de prazer que se seguia a momentos de alta pressão em que tudo dava certo pautaram minha existência até aqui.
Uma necessidade constante de urgência, pressão e até mesmo de pânico para enfrentar a vida. O pé no acelerador a todo vapor, convencida de que a desaceleração me colocaria em risco.
Assim como ocorre com quem tem outros vícios, eu também me questionei muitas vezes sobre como deixei as coisas chegarem a um ponto insustentável e, tantas vezes mais, prometi a mim mesma (e àqueles ao meu redor) retomar o controle “assim que…”.
E então o “que” começa, mas eu não consigo abandonar a sensação de conforto que o vicio me proporciona. A famosa “dor conhecida”, mesmo que isso me prejudicasse, mais do que a qualquer outra pessoa que tinha que lidar com as consequências das minhas ações.
E então, um próximo marco, um outro “assim que…” e eu fui levando a vida entre um pico altissimo de adrenalina e um constante estado de alerta, seguido de outro pico e outro e outro.
Ao contrário da maioria das adicções, cujos comportamentos são socialmente desaprovados, o meu vício era elogiado e recompensado o tempo todo, principalmente por quem se beneficiou dele e depois me descartou feito papel usado, mas também por quem imaginava querer ter o mesmo nível de entrega e resultado (de preferência sem os mesmos ônus).
A necessidade de sobrevivência nos ambientes mais adoecedores, a ânsia por aprovação, afeto e reconhecimento me tornaram refém de inúmeros abusos e assédios vários, em muitos casos com síndrome de Estocolmo.
Eu fui e sou a primeira vítima de mim mesma, mas como todo caso de dependência e círculos afetivos e de trabalho eu fui também algoz em alguns momentos. Bem mais do que eu gostaria.
Lidar com as consequências e reparação dos meus atos, das minhas escolhas (porque sim, o livre arbítrio de alguma sempre está ali, mesmo que as condições e ferramentas para exercê-lo variem muito!) dói. Me assombra, na verdade!
As pessoas que trabalham diretamente para alguém viciada em adrenalina e trabalho acabam tendo que responder — e até mesmo possibilitar — o nosso vício, e inevitavelmente sofrem com esse ciclo. Sofrem mais ainda quando te amam.
Os amigos e familiares, da mesma forma, tornam-se alvo frequente do descumprimento de promessas, frustrações várias, sem falar na preocupação com quem amam e que, claramente estão vendo definhar diante de seus olhos.
Mas, de novo, há também um alto nível de codependência. Porque, em maior ou menor grau, as pessoas ao redor também obtém benefícios do nosso vício.
Tudo está blasé e me sinto vivendo um clichê. E estou feliz.
Quando ela me perguntou, como sempre faz no início das nossas sessões, como tinha sido a semana e como eu estava, disse que “tinha sido meio blasé, sem grandes acontecimentos e que eu estava me sentindo bem com isso, o que era estranho para mim”. Mais: esse sentimento estava bloqueando minha criatividade, havia escrito pouco, lido quase nada e focado nas aulas de Twerk e Pole e na evolução dia a dia dos exercícios, nos momentos mais triviais do cotidiano e estava pensando muito menos no passado e no futuro de médio e longo prazo.
Minhas maiores “preocupações” eram as ferias escolares, programar os passeios, organizar a casa e estava (estou!) surpresa em quanto prazer estava (estou!) extraindo disso.
Assistir filmes em família toda noite, sem olhar o celular, as conversas aparentemente banais sobre a escola, o trabalho do boy, os móveis, as flores, filmes e séries e as frivolidades da vida.
Seria então isso?
A felicidade é um conjunto de dias ok? Um dia após o outro sem sobressaltos e picos de alegria intensa e o ápice da erupção de prazer que a adrenalina me proporcionava? É isso que as pessoas chamam de saúde mental?
Acho que sim!
E eu nunca experimentei isso como estou, de verdade, provando hoje.
E o desconhecido nos traz sempre um estranhamento, um desconforto inesperado justamente pela ausência de grandes marcos.
Será que nunca fui realmente feliz? Estava apenas dopada? Anestesiada pelo rush e pelo pico que a descarga de adrenalina me proporcionava?
Não tenho muitas respostas ainda, mas sinto que preciso me permitir aproveitar esse novo sentimento para descobrir os caminhos que se apresentarão daqui em diante e saber o que significa, de fato, aproveitá-los.
ESCRITO NUM GUARDANAPO
Um brinde, camaradas,
e antes de tudo peço que me perdoem
por cruzar, sem permissão e sem compostura,
as portas da emoção:
nosso irmão, de tão distante país,
nossa filha saída das entranhas, menina dos nossos olhos,
fundam sua nobre casa sobre firme pedra.
Filhos do povo,
comunistas os dois,
escutaram a voz fulminante do coração.
A alegria também é revolucionária, camaradas,
como o trabalho e a paz.
Casamento de flores vermelhas, um viva para eles!
Muito amor um ao outro!
Sempre fiéis e mutuamente se apoiando
nos darão uns filhos lindos
(já digo isso pedindo perdão)
que muito iluminarão os primeiros dias de maio.
É que a partir de agora
cada um é um camarada
multiplicado por dois.
Isso é tipo falar
do lado prático do romance.
Comamos e bebamos, camaradas.
Roque Dalton
Nenhuma experiência é realmente individual
Nunca é demais lembrar que o fenômeno de individuação do “eu” autorreflexivo é produto da modernidade, acelerado e acentuado pelo capitalismo e altamente degradado por sua versão mais perversa: o neoliberalismo.
A necessidade de viver em estado de alerta, movidos por uma sobrevivência alheia ao coletivo, esvaziada de solidariedade e pautada em êxitos individuais e soluções autocentradas, nos leva a facilmente confundir causas e sintomas.
Uma vida esvaziada de propósito é o outro lado da moeda de uma sociedade que valoriza o prazer puramente edonista do momento e a necessidade de TER e EXPERIMENTAR sempre mais, como ferramenta de sustentação de um modelo social fundado na exploração e na desigualdade.
É uma roda perversa em que o “eu” constitui elemento significante essencial de alienação e despolitização.
Não é disso que estou falando aqui!
Comamos e bebamos, camaradas!
RECEITA DE ESPANTAR A TRISTEZA
Faça uma careta
e mande a tristeza
pra longe pro outro lado
do mar ou da lua
vá para o meio da rua
e plante bananeira
faça alguma besteira
depois estique os braços
apanhe a primeira estrela
e procure o melhor amigo
para um longo e apertado abraço.
Roseana Murray
Bom, por hoje é só. Sem outras dicas a não ser a que Mujica nos deu:
Viemos ao planeta para sermos felizes. Porque a vida é curta e passa rápido.
Com amor, Tay ❤️
ps: muito obrigada a todo mundo que conferiu e me deu feedback no De quantas metamorfoses se faz uma vida? E se você ainda não conferiu, vai lá e me conta o que achou e, se quiser, sua história de assédio e/ou burnout e/ou metamorfose e transformação.
Ahhhh e se você chegou agora, confere aqui a última edição dessa cartinha que sai toda semana com o compilado do meu mundinho.