#15 Com amor, Tay ❤️- com quem você pode ser a sua pior versão?
Surto, Tretas e Biscoitos (Cafeínados)☕🔥🍪
ALERTA DE GATILHO: este texto pode conter gatilhos como expressões e xingamentos sobre aparência e outras características físicas e psíquicas, bem como gatilhos para pessoas em depressão. avalie seu estado emocional antes de seguir com a leitura e, se necessário caso se sinta desconfortável, pare a qualquer momento!
para ler ouvindo: A musica mais triste do ano
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade - A flor e a náusea
Amor, quando nosso vinho amargar ou perder o sabor
Quando a maquiagem borrar e as fotos perderem a cor
Tu ainda vai querer me aquecer
Quando não me restar nem calor?
E quando o cigarro apagar
Vai ter válido a pena as cinzas e o frescor?
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
Alcoólicas (I)1
há uma versão, uma faceta, um ladrilho quebrado em cada uma de nós. uma fresta para o abismo que passamos a vida toda tentando esconder. silenciar. ignorar. um lado monstruoso, que pensa coisas horríveis sobre si mesma e sobre o outro, sobre o mundo.
impronunciáveis…
apenas pensá-las é suficiente para nos sentirmos envergonhadas, imagina falar em voz alta. mesmo um murmuro fino nos faz enrubescer. pior ainda se for para quem queremos que goste da gente.
imagina…
algumas palavras são cruéis e mesquinhas demais para saírem por aí nos desnudando.
impensável…
a coisa é que, essas palavras, tal qual arsênico, nos envenenam quando não são expelidas, guardadas a sete chaves nos lugares mais escondidos do nosso inconsciente. por vezes aparecem em sonhos para nos atormentar. outras vezes surgem no meio de uma reunião. e nos sentimos nuas em público. sem chão onde firmar os pés.
náuseas, vômitos, dor abdominal, dor no peito, ritmo cardíaco anormal, pele vermelha e inchada, sensação de "formigamento" nos dedos…
por dias, meses, anos, décadas, eu consigo ser tão cruel, injusta e mesquinha, cínica. há dias, meses, anos, décadas, eu penso e falo coisas horríveis para mim mesma…
Quando a nossa música tocar
Tu ainda vai lembrar do ritmo?
Quando o mundo me machucar
Tu ainda vai querer curar minha dor?
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussuras: ah, a vida é líquida.
Alcóolicas II
lá no início das campanhas da Dove sobre beleza real, me lembro de ter visto um vídeo da campanha francesa (que nunca mais achei na internet!), em que mulheres tinham que anotar em um diário tudo que pensavam sobre si ao se olharem no espelho durante um determinado período de tempo.
sem elas saberem (em tese), enquanto elas estão esperando por alguém da produção em um café, sentam-se duas pessoas próximas e uma começa a falar para a outra as frases coletadas nos diários.
coisas como: você é uma porca; que barriga horrível; essa cara cheia de espinha é nojenta; como você pode ser tão burra e desleixada; ninguém nunca vai te amar porque você não merece ser amada;
ditas no meio de um café para uma atriz por outro/a ator/atriz, as ofensas chocavam, inclusive a própria dona do diário que ficava horrorizada com tamanha violência.
“por que você fala para si mesma, coisas que jamais diria a uma amiga ou a alguém que ama?”
não era exatamente isso, mas era quase isso…
passei a usar essa estratégia com todas as pessoas ao meu redor que estavam sendo duras demais consigo: “se fosse eu nessa situação, você pensaria essas coisas sobre mim? ou sua mãe, ou irmã, ou qualquer pessoa que você ame tanto que jamais teria coragem de sequer pensar tais palavras…”
empatia…
estranhamente (?), a dificuldade de aplicar isso àquilo que digo para mim mesma sempre foi mais difícil. recentemente tem sido difícil demais… pesada, excruciante, tarefa impossível para uma mulher só…
Quando chegar o cansaço
Meu abraço ainda vai ser teu abrigo
Mas quando a vida acabar
Ainda vai querer ir pro mesmo lugar onde eu vou?
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
Se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.
Alcóolicas III
e eu havia melhorado tanto: estava sendo gentil e generosa comigo.
as vozes cruéis me aprisionaram novamente. em um poço fundo onde ninguém pode me ouvir ou me socorrer, estamos apenas eu e elas. em uma masmorra escura.
elas gritam palavras estridentes que me deixam enojada, atordoada, exausta.
palavras que cortam e sangram, que jogam sal em feridas que nunca cicatrizaram de verdade.
tampo os ouvidos com força para tentar não ouvir, mas elas puxam minhas mãos, chacoalhando a minha cabeça com tanta violência que fico zonza. quase desmaio.
sigo lutando contra as vozes com todas as minhas forças. remédio, terapia, exercícios, alimentação, rotina, autocuidado, amor…
minhas forças estão acabando. meu espírito esvai-se e vai me abandonando lentamente. não consigo mais lutar sozinha.
náuseas, vômitos, dor abdominal, dor no peito, ritmo cardíaco anormal, pele vermelha e inchada, sensação de "formigamento" nos dedos…
aos poucos começo a escutar outras vozes.
vão surgindo, outras palavras que, no início, parecem sussurros, mas as vozes cruéis e monstruosas vão diminuindo diante do timbre calmo e impassível destas novas vozes.
de onde elas vem? o que dizem?
é difícil prestar atenção e entender, ainda no fundo do poço, no escuro dessa prisão gelada, mas elas vão me acalmando.
antídoto para o veneno que me corroía inteira.
paro de tampar os ouvidos para ouvir melhor. aperto os olhos quando a escuridão começa a diminuir.
ainda dói, mas o freixo de luz me aquece. paro de tremer aos poucos e as lágrimas de dor são substituídas pelas de emoção. não consigo contê-las…
acolhimento…
Ainda vai tentar me entender
Quando eu não fizer mais sentido
E ficar comigo quando tiver visto
O pior lado de quem eu sou?
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
Alcoólicas - IV
mãos começam a me puxar. devagar, delicadamente
ainda estou frágil e preciso de tempo, mas suas vozes vão me guiando e eu sei que sairei desse poço mais cedo ou mais tarde.
elas murmuram mantras para serem repetidos quando eu estiver sozinha de novo e as outras vozes tentarem invadir e me convencer daquelas coisas horríveis.
mantras de compaixão…
Tua voz e tua respiração são meus sons preferidos
Mas quando eu esquecer de viver
Teu olhar ainda vai me lembrar quem eu sou
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
Alcoólicas - V
renascimento…
por todos os lados lemos mensagens “motivacionais” nos encorajando a buscar a validação apenas internamente (ênfase no apenas, caso o negrito não seja suficiente!). ideias de independência, autonomia emocional, autossuficiência.
como alguém que passou a vida toda dependendo de validação externa eu entendo, de verdade, as boas intenções (não todas!) deste movimento. também não nego - em absoluto - a importância de libertarmo-nos da imposição de padrões e da expectativa dos outros sobre as nossas existências.
emancipação…
só que ele é também um movimento que vai de encontro ao que há de mais nefasto no neoliberalismo, que nos quer individualistas, isoladas, sem laços de solidariedade sólidos.
Entenda o básico, o mais simples: para sermos felizes, precisamos da vida dos outros. Os indivíduos sozinhos não são nada; os indivíduos dependem da sociedade, e o progresso da sociedade é o que nos permite enriquecer e melhorar permanentemente nossa vida.
Pepe Mujica - 1935 - 2025
não nos enganemos pelo papinho de “eu me basto”, “seja seu maior fã”, #girlpower e falso empoderamento: nossas vozes podem ser as mais cruéis e perversas que existem.
nosso carequinha mais amado nos provocou a pensar em “como ser sujeito sem ser sujeitado?”2 e, ao me ver repensando sobre o “cuidado de si”, em um campo mais político, filosófico e sociológico, retomei anotações das minhas leituras sobre isso e me dei conta de que eu estive olhando pela janela errada.
há respostas para além do individual e do cuidado de si que eu precisava resgatar para me manter viva na luta contra as minhas vozes.
Foucault problematizou a constituição do indivíduo como livre empreendedor de si mesmo na biopolítica neoliberal e eu tenho mergulhado tão fundo no “eu”, depois de um profundo adoecimento que, de certa forma, atribuí ao “nós” que me esqueci daquilo que me dá sentido para viver e me peguei quase despolitizada na minha própria existência.
é isso que o neoliberalismo precisa para funcionar à sua máxima potência: o controle de subjetividades para minar a consciência de coletividade e lutas coletivas.
A utopia serve para nos guiar através da incerteza em que navegamos. Então não é mais uma utopia, tem o calor de ser um guia para a vida real. Não partimos para alcançar uma estrela, mas ela pode nos permitir caminhar com uma direção concreta aqui na Terra. É por isso que a utopia nunca está acabada, nunca é completa, nunca é perfeita.
Pepe Mujica - 1935 - 2025
a solidariedade e o afeto politizados por uma utopia de um mundo melhor é o que nos permitirá sempre encontrar forças para lutar por nós e pelos outros.
então: de quem é ou de quem são as vozes que te trazem de volta quando você mostra o seu lado mais feio e monstruoso?
escute essas vozes!
são elas que irão te ajudar a silenciar - ou ao menos diminuir o volume - das crueldades que você diz para si.
escute quem vê sua faceta mais difícil de ser amada e mesmo assim te quer bem!
quem está ao seu lado para lutarem juntos por um mundo menos duro, ainda que isso signifique perder batalhas difíceis.
silencie quem só aceita o seu lado fácil e faz questão de reforçar apenas aquilo que as suas vozes cruéis passaram a vida inteira te dizendo!
e mais: seja você também a voz que resgata quem você ama!
fale!
fale sempre o quanto as vozes cruéis dela estão erradas, estão mentindo para enganá-la e deixá-la perdida na masmorra.
fale com doçura e intenção!
seja a voz que ajuda a guiá-la nesta subida.
o esforço para sair de lá, ainda será dela, mas suas indicações, seu timbre acolhedor, ouvir a sua respiração ali com ela nesse caminho escuro, pode fazer toda a diferença entre continuar tentando subir ou sucumbir ao caos barulhento e estridente que tem dentro dela. afinal, a dor conhecida, muitas vezes é mais confortável do que encarar o desconhecido!
tanto você, quanto ela, quanto eu, merecemos poder recomeçar. e fazê-lo ao lado de quem nos quer bem, em solidariedade e afeto mútuos, é muito mais fácil e também mais gostoso!
(a arte acima é da genial
que também tem uma news imperdível por aqui que recomendo demais, como tudo que ela faz!)fiquem bem!
cuidem dos seus amores e de si!
um agradecimento especial para as minhas vozes salvadoras!
vocês sabem quem são!
Com amor, Tay ❤
Diquinhas Com amor, Tay ❤
essa edição da
da sobre heteropessimismo tem conexão, não tão direta, com essas reflexões de hoje, especialmente no que diz respeito à tendência de uma geração (não necessariamente geracional, mas também!) de relacionar-se de forma unilateral. ela foca na questão da sexualidade (com a qual concordo integralmente), mas isso se aplica também a muitos outros campos.
o primeiro episódio da nova temporada do Mano a Mano está espetacular. não podia ser diferente com o convidado mais do que especial. Paulo Vieira fala de tudo um pouco, com seu jeito bem-humorado e politizado de sempre. em especial, me tocou muito quando ele fala que “ninguém sai da miséria ileso, ninguém sai da miséria com a cabeça boa.” o Paulo é f0d@ demais (e eu nunca me esquecerei que tenho um áudio dele pra mim! sim! esse foi um dos momentos “ganhei na vida” do ano passado!)
e, por falar em Mano a Mano, tem esse texto incrível da minha amiga e grande referência
que vale a pena ser lido e espalhado por aí.
Pecadores - do Ryan Coogler é simplesmente imperdível!!! difícil dizer qualquer outra coisa a não ser que é uma obra que precisa ser assistida, saboreada, refletida. tudo é excelente e a única parte ruim é que ele acaba.
Bom, por hoje é só meu povo…
Com amor, Tay ❤️
Ahhhh e se você chegou agora, confere aqui a última edição dessa cartinha que sai toda semana (ou quase) com o compilado do meu mundinho.
Se você quiser ver mais fotos com textos e poemas de minha autoria falando de processos e metamorfoses, dá uma conferida no De quantas metamorfoses se faz uma vida?, meu projeto autoral de transformação pela arte.
Alcóolicas é uma série de poemas da Hilda Hilst que li por meios heterodoxos, mas que estão disponíveis no Amavisse e Outros Poemas que você pode adquirir facilmente em qualquer livraria física ou online.
Foucault, M. (2008). Segurança, território, população (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 2004)
Tava lendo até que fui pega de surpresa com a menção! Que texto maravilhosoooooo!!!