“Eu não acredito em deus, mamãe”, ele disse com a vozinha grossa para a idade, um pouco rouca, sem aquele tom estridente de muitas crianças, e ainda assim indubitável e docemente infantil mais do que o suficiente para encher o coração de qualquer um de ternura instantânea.
Ela parou por um momento, o pincel de rímel suspenso no ar. Maquiava-se em pé, ao lado da criança que desenhava em silêncio. Ele parecia absorto no papel até soltar a frase, de sopetão. Uma única sentença, sem aviso, sem contexto.
E de que mais contexto ou explicação precisa uma frase dessas?
Ela tem sujeito, predicado e complemento.
Ela se basta e se sustenta!
Mesmo assim, vinda daquela vozinha rouca e doce, traz um choque.
Enquanto respondia com a maior naturalidade que conseguiu reunir, começou a se perguntar se ela mesma de fato acreditava. Ela ainda acreditava em Deus? Em deus? Em algo? Alguém?
“E como foi que você chegou a essa conclusão, meu amor?”
“Quando entendi que não existia Papai Noel!” ele afirmou decidido, como se estivesse esperando desde o início por aquela pergunta e quisesse demonstrar a construção lógica de seu raciocínio. Sabia que ela ficaria orgulhosa. E deixá-la orgulhosa, fazê-la sorrir, ainda era sua atividade preferida. Ela adorava isso, principalmente porque sabia que não seria assim a vida toda. Talvez não fosse tão rápido quanto foi para ele perder a fé em deus, mas descobrir a humanidade - e desumanidade - dos pais é daquelas etapas dolorosas e certeiras para todo e qualquer ser humano.
“É mesmo?! Que interessante!”
"Quer saber por quê?" ele a interrompeu, ansioso. Nem esperou o "claro!" e já começou:
"Então, quando eu estava muito desconfiado de que Papai Noel não existia e te pedi pra contar a verdade, eu já estava pensando assim: 'Bom, se ele não existir, então com certeza não tem Coelhinho da Páscoa, nem Fada do Dente e todas essas outras lendas aí.' Bom, daí (o sotaque curitibano que ela só conseguia amar vindo dele…), quando você me explicou que era uma lenda, uma fantasia para deixar a vida mais leve, as festas mais gostosas e que toda cultura tem essas lendas, e essas coisas de fantasia para tornar a vida menos dura, na hora me ocorreu ‘opa, Deus deve ser assim também’. Porque, se cada um acredita em uma coisa diferente, e cada um não acredita na coisa do outro, é porque não tem assim uma coisa certa-certa, né?! Então foi isso, eu entendi que ele não existe e eu não acredito nele.”
A cara perplexa, ao mesmo tempo transbordando um orgulho pavão daqueles que, se tivesse um outdoor em led se leria bem grandão: É M E U F I L H O, se misturou a um olhar doce e também triste por constatar a perda da fé tão cedo.
Se ele já não acreditava em deus aos 7 anos, o que será que lhe sobraria para acreditar aos 40, quando ela, que sempre foi uma otimista incorrigível, movida pela fé na humanidade e em todas as coisas mais clichês do mundo, já não acreditava em mais nada a não ser na dor de existir em um mundo tão desigual e injusto e na angústia de não conseguir silenciar seus pensamentos, sentimentos absolutamente palpáveis e igualmente intensos.
Este pensamento sobre a descrença a deixou melancólica enquanto o abraçava e enchia de beijinhos com marcas de batom.
Será que ela precisava lhe dizer algo mais? Lhe dar alguma coisa para acreditar e substituir a lenda deus/papai noel? Ou o silêncio do abraço quente seria suficiente?
Na falta de algo melhor, ela emendou um pouco insegura, olhando-lhe fundo nos olhos de jabuticaba que havia herdado do pai: “espero que isso não signifique que você não goste mais do Natal”. Ele gargalhou alto e disse “claro que não mamãe! que loucura é essa?!” e, com a cara de espanto e curiosa que ela fez arqueando a sobrancelha, emendou: “afinal de contas, eu ainda acredito nisso aqui” e apontou para a foto dos quatro, ela, ele, o pai e o doguinho na bancada: “acredito no amor!”
Um arrepio subiu pela espinha, o estômago se torcendo como em uma montanha-russa. Abraçou-o, apertando-o contra si, enquanto beijava sua testa com força.
"Sim", ela pensou, antes de dizer em voz alta. "E isso é muito, muito real."

Para fechar o ano com leveza (enfim, a hipocrisia!), escrevi este conto natalino que mistura algumas reflexões, carinho e aquela pitada de sabedoria infantil.
Espero que toque seu coração e traga um sorriso — ou pelo menos te faça acreditar um pouquinho mais no que importa para você.
Que o Natal seja doce para quem é de Natal e suave para todas, todos e todes com seus afetos ou a sós, passando rápido para quem não curte, e bem devagar para quem está precisando dele!
Beijos e abraços quentinhos
Com amor, Tay ❤




