Foi a caminho de Londres, ouvindo Arlindo Cruz cantar para Iansã, que me peguei refletindo sobre a nostalgia que sempre senti de um Brasil que talvez nunca tenha existido. Sobre ser alguém que habita um constante "não lugar". E, paradoxalmente, sobre a beleza de estar em uma "encruzilhada do belo" — chamarei assim, sempre, o privilégio de ter vivido entre Brasil e Itália, podendo me sentir um pouco de cada e, ao mesmo tempo, de lugar nenhum.
Estrangeira, extracomunitária1, la brasiliana, ilegal, sem documentos... chamem como quiserem. Esses rótulos atravessaram toda a minha construção de identidade. Alguém que não pertence.
DESLOCAMENTO...
Nem todo mundo sabe, mas cresci fora do Brasil e, como imigrante extracomunitária (ilegal mesmo!), as notícias que chegam dos EUA têm me abalado profundamente. Dias atrás, sonhei que minha professora favorita, Giovanna Percoco, me denunciava às autoridades e a polícia vinha me buscar em casa no meio da madrugada.
Se fecho os olhos, ainda sinto o cheiro dos livros usados que eu ganhava no começo do ano letivo. Lembro dos meus colegas africanos, asiáticos e latinos, também imigrantes — a maioria refugiados de guerras ou sem permesso di soggiorno2, como eu. Nos olhávamos com cumplicidade e receio. No hospital, ninguém questionava nosso status migratória, mas o medo de "ser mandada embora" era constante. Minha mãe e meu irmão conseguiram o permesso em algum momento; eu e meu pai, não.
Sim, eu fui a criança que poderia ser denunciada na escola. Fui uma "imigrante ilegal" por cerca de dez anos.
Obviamente, esta é também a vivência e perspectiva de uma criança branca, sem nenhum sotaque na fala que a pudesse identificar minha condição (100% das vezes as pessoas só descobriam que eu era brasileira quando perguntavam de onde era meu nome).
Nel quartiere3 nossa família era conhecida. Infelizmente por razões que me enchiam de vergonha - e mais medo. Eu tive um pai adicto, que estava alcoolizado 90% do tempo, que ia me buscar na escola no meio da aula para abusar de mim, confirmando todos os estereótipos sobre latinos e "esse povo subdesenvolvido". Não foram poucos os barracos, vizinhos ameaçando chamar a polícia, apartando brigas, escândalos, ir para escola cheia de roupa cobrindo os braços, ou apenas maquiada para esconder os olhos inchados por chorar a noite toda. Fomos parar na polícia algumas vezes e toda a vizinhança nos conhecia como i brasiliani.
Por outro lado, lembro como se fosse ontem do dia em que Ayrton Senna morreu. Justamente na Itália. Os vizinhos me abraçavam, davam pêsames sinceros. O Sr. Jerry, dono do bar em frente à minha casa e tio de uma das minhas melhores amigas, pendurou dois enormes pôsteres do Senna logo acima dos fliperamas. "Para nos honrar devidamente", disse ele. E eu me senti honrada.
Naquele bairro, naquela comunidade, eu era mais do que imigrante e extracomunitária. Eu era brasiliana — e muito mais. Melhor amiga, vizinha, parte de uma comunidade religiosa, uma das melhores alunas da escola, uma "promessa". Minhas professoras tinham planos para mim. Me viam advogada, trabalhando na ONU, buscando a paz mundial.
Quando contei que voltaria ao Brasil, toda a "minha comunidade" se mobilizou. Me ofereceram moradia, dinheiro, apoio. Minhas professoras choraram (sim, havia um tanto de visão colonizadora ali; achavam que eu estava sendo enviada para "o meio da floresta" — e, ainda que fosse, né?). Meus colegas e suas famílias me deram presentes, e até hoje guardo as cartas que recebi no meu 15º aniversário. Pela primeira vez, me senti pertencente.
Nunca me senti italiana. A identidade nacional é uma coisa estranha. Eu era uma criança de pouco mais de cinco anos quando saí do Brasil, mas há apenas duas cidades que me fazem sentir em casa: São Paulo e Roma.
Sabia o hino brasileiro de cor, mesmo sem nunca ter estudado em escola brasileira. Na Copa de 94, decoramos a sacada com as cores do Brasil. Vibrei com cada pênalti contra a seleção do país onde eu vivia. Chorei a morte do Senna como se o conhecesse. Sempre me senti brasileira. Paulistana de pai e mãe.
Cresci ouvindo Bossa Nova e MPB e desde muito nova eu já sabia que não há língua mais bela para cantar e chorar as dores da humanidade que o português brasileiro. Mas qualquer canção napoletana ou romana me faz curvar de emoção. Choro 100% das vezes que escuto Roma Capoccia ou Arrivederci Roma. Assim como chorava ouvindo Caetano cantar Sampa e os hinos da MPB sobre o exílio.
Eu defendia o Brasil com unhas e dentes. Sentia saudades até do que nunca vivi.
Entre idas e vindas, somei oito anos em São Paulo, quase dez em Roma. Moro há 26 anos em Curitiba. Aqui conheci o amor da minha vida, tive meu filho. Mas ainda não me sinto "em casa". Faço questão de dizer que "não sou daqui" em Curitiba e que "sou daqui mesmo" ao pousar em São Paulo.
Ser imigrante (e migrante) é ambíguo.
Não sei ao certo precisar em que ano foi, talvez as datas estejam confusas, mas me lembro do período em que quase nos mudamos para uma ocupação. Era em Roma (sim, isso também existe lá, e já nos anos 90 era cheia de imigrantes e italianos). Lembro de visitarmos o prédio, bonito, cheio de crianças, e de achar que aquela seria nossa única saída.
Não sei exatamente como, no fim, conseguimos evitar essa mudança. Tivemos muita sorte em muitos momentos. O nosso locador, Signor Ottaviani, perdoou dívidas e fechou os olhos para alguns barracos. Ir ao mercado significava passar vontade. A primeira roupa nova que comprei foi com um dinheiro do governo – uma espécie de indenização por um pequeno acidente que sofremos no que seria o equivalente ao Rodoanel. Minha mãe trabalhava sem parar, em vários empregos, e mesmo assim precisávamos de ajuda: da igreja, dos vizinhos, do Estado.
Muitos anos depois, já em Curitiba, na faculdade, fiz um trabalho sobre o MST e visitei um assentamento. A imagem das famílias, das crianças que um dia eu mesma fui, nunca saiu da minha cabeça. Em um universo paralelo, eu poderia ter sido aquela menina, estudando na mesa improvisada da cozinha. Em que momento o destino me colocou do lado dos que são aceitáveis? Em que instante me foi concedido o privilégio de estar do lado da mesa onde se come e se bebe com os que se sentem confortáveis o suficiente para chamar aquelas pessoas de vagabundas, culpá-las pela própria miséria?
Lembro dos sapos que engoli ao ouvir colegas dizerem que "essas pessoas querem tudo de mão beijada", que "vagabundos assim precisam parar de reclamar e correr atrás". Justamente de quem nunca precisou trabalhar para se sustentar. De quem nunca soube o que é escolher entre comer e pagar o aluguel. De quem jamais sentiu o pânico de estar a um passo da rua. Eles acreditam, genuinamente, que merecem todos os seus privilégios – e que, portanto, os "outros" são responsáveis pela própria miséria.
Frequentemente, enquanto acaricio os cabelos do meu curitibano preferido já adormecido, lembro da menina ruiva estudando na cozinha improvisada do assentamento. Tomamos um café e eu a observei, sardentinha, caderno encapado de verde. Naquele momento, aos 17 anos e meio, eu me sentia distante dela e do destino que a esperava. Já era o projeto da Tayná que me tornei. Hoje, me sinto cada vez mais próxima e conectada a essa criança. À criança que fui.
E aí está: se de um lado me sangra ver como os imigrantes são tratados lá no Norte, do outro me dói a decepção constante com o Brasil que sempre idolatrei. O Brasil que eu chamava de "casa" ao contar para meus colegas italianos sobre "minha terra tem palmeiras…".
O Brasil que sempre sonhei, que construí entre memórias embaralhadas de uma terra ensolarada, alegre, acolhedora…
Sim, o Brasil foi e é, em parte, uma grande decepção.
O Brasil real é racista, homofóbico, transfóbico. Conivente com o homicídio de suas mulheres, seus jovens, seus povos originários. É conservador, mesquinho, hipócrita. É o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+, que tem a polícia mais letal, que extermina sua população indígena – seja na bala, seja na asfixia social, arrancando-lhes direitos, a possibilidade de SER.
Mas o Brasil também é rico.
Rico em cultura, em corpos suados roçando-se com desejo, luxúria ou pura graça. Rico em uma culinária inigualável, em uma criatividade sem igual. O Brasil de Abdias, Carolinas de Jesus e Lélia. De Florestan, Darcy, Chicos e Zecas.
Temos tambores e surdos.
Ahhh, o samba…
Talvez a mais pura – e talvez a única – prova de que Deus há de ser brasileiro.
E se o mundo todo parece rodar como uma fita VHS no rewind acelerado, se minha nostalgia já se transmutou em amargura, medo e resignação, resta-me transformá-la em algo mais: determinação e inconformismo.
Que a indignação me permita continuar lutando para que o Brasil possa ser o Brasil das minhas memórias fabricadas.
E não só o Brasil…
Porque se o Norte Global está cheio de racistas, misóginos, xenófobos ignorantes, ele também não é só isso. E eles, os boys mimados, podem se debater o quanto quiserem, mas foi com o sangue e o suor de muitos povos que sua riqueza foi construída. E será pelas mãos desses povos também que essas potências arrogantes cairão.
Já foi assim um dia. Pode ser assim de novo.
Prefiro acreditar.
Minha criança imigrante e deslocada precisa disso para seguir vivendo.
Com amor, Tay ❤
"Não haveria motivos pra gente desanimar
Se houvesse remédio pra gente remediar
Já vai longe a procura da cura que vai chegar
Será
Que a força da fé que carrega nosso viver
Pode mover montanhas pra gente poder passar?
É a nossa oração, pedindo pra Deus, Oyá."
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Em tempo: não é paradoxal que a nossa cidadania (por ascendência do meu tetravó) esteja para sair a qualquer momento e tenha zero a ver com ter nascido lá (meu irmão) e ter vivido lá por quase uma década?! Enfim… questões….
termo que utilizam para se referir às pessoas que não vem de países membros da União Europeia de modo pejorativo. Se a proveniência é um país do Norte Global, o imigrante é expat.
equivalente italiano ao - bem mais famoso - green card
bairro em italiano
Fazia muito tempo que eu não ouvia o termo extracomunitária. A última vez foi para se dirigirem a mim mesma, uma “brasileira que nem parece brasileira” quando fui reconhecer a cidadania lá na Itália. Mesmo fazendo isso na cidade dos meus parentes, na rua que leva meu sobrenome, com imensos privilégios, eu ouvi este termo. Obrigada por ter compartilhado sua história, Tay, e que bom que seus laços com sua criança migrante ainda persistem.