Conto #1: uma tetralogia de desconforto
qualquer semelhança com a vida real, pode - ou não - ser uma mera coincidência...
Ela acordou com a cabeça pesada, como se estivesse tentando emergir de um pesadelo que insistia em continuar mesmo depois de abrir os olhos. O sentimento de fracasso a abraçava como um velho conhecido — invasivo e, ao mesmo tempo, apavorantemente familiar. Como um bafo quente cheirando a álcool que marcou a sua infância.
"Os números não mentem", murmurou, abrindo o aplicativo no celular como se fosse um reflexo incontrolável. A luz da tela iluminava seu rosto cansado enquanto tentava decifrar o que estava errado. As pessoas não estavam mais curtindo seus posts. Por quê? Ela sabia porquê… e lembrar-se disso era sempre como um pequeno murro na parte alta do estômago.
Desligou o celular e encarou o teto. O barulho dentro dela era ensurdecedor, mas, do lado de fora, o silêncio parecia zombar. “É insuportável”, sussurrou quase sem perceber. “Quem?”, a outra voz dentro dela provocava. “Eu, eu sou insuportável!”, respondeu, sentindo os olhos começarem a arder.
Era terça-feira. Terça-feira de terapia. Levantou-se devagar, tomou um banho quente e escolheu uma lingerie bonita. Um gesto pequeno, mas significativo. Não era sobre seduzir ninguém, era sobre se lembrar de que ainda estava ali. "Se vou me arrastar, que pelo menos eu me sinta gostosa", pensou enquanto passava batom.
No meio desse caos interno, chegou à terapia e descobriu que a sessão seria uma atividade de trabalhar com argila.
Aparentemente, colocar a mão na massa é algo terapêutico. Lhe disseram que poderia moldar sua dor e transformá-la em algo bonito. “Acabei moldando uma peça torta que parecia um coração esmagado por um caminhão.” Ela riu com ironia. "Claro que foi isso que saiu de mim, né?" — sua voz soava metade divertida, metade amarga. Ahhh, a arte da autodepreciação. Esta, ela dominava com maestria.
E foi ali, com as mãos sujas de argila, que lhe ocorreu: “Eu não me cobro tanto como mãe quanto me cobro como profissional porque, no fundo, construí minha identidade inteira baseada no trabalho. Eu sou quem eu sou pelo que eu faço. E agora que não estou fazendo nada, quem diabos eu sou?”
A pergunta ficou no ar, para a próxima sessão.
Já no Uber, pegou o celular e se perdeu nos números novamente. Por mais que odiasse admitir, importava para ela. "Por que eu dou a mínima pra isso, caralho?", resmungou, frustrada consigo mesma. Não tinha resposta, mas não conseguia parar.
Chegou em casa, colocou a playlist da Billie - a Eilish, mas acabou também na Holiday - e acendeu um cigarro. A fumaça subiu lenta, contrastando com o caos que fervilhava em sua cabeça. "Melhor do que mil trepadas", disse a si mesma, quase como uma desculpa. Ela sabia que estava se matando devagar, mas havia algo inegavelmente delicioso na tragada.
Naquela noite, cantou no espelho usando um vibrador como microfone. Gargalhou sozinha. Tirou fotos sensuais e mandou para o marido, mais por prazer próprio do que para provocá-lo. "Se vou ser esposa-troféu, que seja nos meus termos, né?", riu, sentindo-se, por um instante, livre. No fundo, ela sempre debochou dessas mulheres. E agora parecia exatamente quem ela estava se tornando.
Mas a liberdade era fugaz. Logo voltava a se perguntar: quem sou eu? Quantas chances ainda teria de recomeçar? Quantas vezes cometeria os mesmos erros e padrões, se colocando em último lugar para, ao fim, sentir-se a pessoa mais solitária e incompreendida do mundo?
“Pelo menos hoje estreia o último episódio da série A Amiga Genial”, pensou enquanto pegava uma cerveja e salgadinhos na geladeira.
Ela já havia lido a tetralogia inteira de uma vez só. Foi a primeira coisa que conseguiu ler depois de dois anos de puerpério em que mal tinha forças para encarar um rótulo de shampoo. Agora que a série acabava, resolveu reler no original. “Por que não?”
Sentia-se ora como Lila, ora como Lenù. A genialidade indomável de Lila a fascinava, mas, no fundo, a torturava pensar que talvez fosse mais Lenù do que gostaria de admitir. "Eu saí do Rione. Não vivo mais na miséria, no inferno daquela infância feita de gritos e silêncios dolorosos", pensava, mas não conseguia se livrar das raízes que a puxavam para baixo. O SUV na garagem e as tetas de silicone não apagavam a memória da menina que sonhava com uma penteadeira rosa enquanto fugia do caos familiar.
Pegou o gravador do iPhone todo riscado e sorriu pensando no marido reclamando de como ela era descuidada. Parece até que nasceu em berço de ouro…
Na pasta do gravador chamada “notas para mim mesma”, começou a gravar:
“Sou Lila ou sou Lenù? Genialidade indomável ou esforço metódico? Ambas me incomodam. Sempre me identifiquei mais com Lila, alguém que brilhava sem esforço. Mas e se eu for apenas uma Lenù frustrada? Esforçada, mas sem brilho. Invejosa, talvez. E seu for maldosa feito Lila? Teimosa, petulante, que termina sozinha e amargurada. E se nem protagonista eu for?! Vai que eu sou uma Gigliola, uma nota de rodapé de um livro brilhante de outras histórias?!”
Fez uma pausa e olhou, com ternura e desconforto, para a foto de família que parecia um comercial de margarina no aparador da sala.
Ela definitivamente era uma protagonista e essa falsa modéstia e apequenamento não lhe caía nada bem.
“Mas por que, então, me sinto tão impostora? Como se estivesse usurpando a vida de alguém mais merecedora?” Se olha no espelho e vê uma mulher que não sabe onde pertence. Uma mulher que se sente uma “adolescente-velha”. Que não se reconhece com 40, e, ao mesmo tempo, parece carregar cem anos de solidão. “É só o burnout falando”.
Dá mais uma tragada e se lembra da argila. Da peça torta, esmagada. Pensou que, talvez, não estivesse moldando nada; estivesse sendo moldada.
“Pelos remédios, pelas sessões de terapia, pelas músicas adolescentes que ainda canto sozinha como uma idiota. Pelo cansaço e pela porra do medo de falhar.”
Naquela semana, comprou torneiras e cubas para a casa nova, um gesto que parecia absurdamente adulto. "Eu lá sou mulher de comprar torneira, caralho?", resmungou internamente, sentindo-se imediatamente culpada pelo sentimento. Tentou equilibrar a realidade mundana com a intensidade do que borbulhava por dentro. Entre uma compra e outra, gravou mais vídeos sensuais, porque era assim que se sentia viva.
As noites eram piores. Sonhava com o trabalho, metas inalcançáveis e reuniões sem fim. Acordava suada e deprimida, mas ninguém percebia. "Ufa", pensava. O silêncio era uma defesa, mas também uma prisão.
E, no final, enquanto apagava o cigarro e se olhava no espelho, sorriu de canto. Era um sorriso melancólico, mas honesto. "Eu sou um caos, mas sou meu caos", disse em voz alta. E, pela primeira vez em semanas, aquilo pareceu suficiente.
E assim seguiu: uma obra de arte inacabada, como a argila. Caótica, provocadora, autêntica, inteira.
“E, quer saber?! Os números que se fodam!” disse rindo, enxugando as lágrimas das bochechas para atender o interfone e receber mais uma entrega.
Este foi o primeiro conto semi-auto-biográfico-de-ficção que publico aqui. Espero que tenham gostado, pois demandou muito desprendimento para abrir este outro lado de escrita que é o que, em geral (estranhamente ou não), mantenho mais reservado e íntimo.
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Com amor, Tay ❤
Maravilhoso!!!! Sua escrita instiga, me faz refletir, me faz te adorar ainda mais.